"Ideias sem contexto." "Como no Brasil, não." "Poderão existir problemas de constitucionalidade." Não podemos fazer juízos sobre uma coisa que não existe." "E os direitos, liberdades e garantias dos acusados?".O anúncio, por parte da ministra da Justiça, Francisca van Dunem, da possibilidade de ser estudada a integração com maior amplitude na legislação penal da figura de justiça negociada [quando a denúncia é utilizada na investigação] em processos que envolvam, para já, crimes de corrupção tem levantado mais dúvidas do que certezas sobre o caminho que Portugal deve seguir neste particular..A discussão começou na passada segunda-feira - Dia Internacional contra a Corrupção -, quando a governante confirmou que um grupo de trabalho nomeado recentemente iria estudar a possibilidade de ser facilitada a denúncia premiada (outro termo para a justiça negociada), a negociação de sentenças em fase de julgamento, a separação dos megaprocessos e a criação de tribunais especializados. Tudo isto para os casos que envolvem os crimes de corrupção..Estava dado o mote para a discussão e para o surgimento de mais dúvidas e críticas do que certezas sobre o tema. Até porque as ideias apresentadas por Francisca van Dunem foram apenas isso: ideias..Temas de discussão que quer ver agora analisados pelo grupo de trabalho, que tem até abril para apresentar propostas. Para já o que se sabe é que a ministra garante que a justiça negociada - no Brasil utiliza-se um sistema conhecido como delação premiada como forma de colaboração com as investigações e que teve o seu ponto mais mediático na Operação Lava-Jato [e na detenção e posterior condenação do ex-presidente Lula da Silva, na sequência de uma denúncia] -, apesar de poder ser estudada, não é o ponto mais importante nas eventuais alterações. Defendeu, sim, a proteção "de quem colabora com a justiça"..Aliás, até a constituição do grupo de trabalho merece críticas por parte da Ordem dos Advogados. "A Ordem não faz parte do grupo. Parece que não querem discutir os direitos, liberdades e garantias. Se for o caso parece que já está tudo feito, não têm ninguém independente", acusou, em declarações ao DN, o bastonário Guilherme Figueiredo..Esse grupo deverá contar com elementos da Procuradoria-Geral da República, do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho de Prevenção da Corrupção e académicos. Como os nomes não são conhecidos, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, já avançou com a proposta de a presidente do mesmo ser a antiga procuradora-geral da República Joana Marques Vidal..Presidente quer consenso.Se o Presidente da República já se mostrou a favor de um "claro consenso nacional" no combate à corrupção, numa mensagem que colocou na sua página online , nem todos pensam da mesma forma..Até ao momento, as principais reações públicas foram do CDS e do PAN, que após o anúncio do governo adiantaram estar disponíveis para que seja criada legislação que proteja os denunciantes..Já entre os militantes do Partido Socialista a questão é mais complexa. O presidente do PS, Carlos César, garante que a delação premiada não existirá em Portugal. "Não descobre a verdade, compra a verdade", frisou esta semana no programa da TSF Almoços Grátis, acrescentando que o projeto do governo é alargar o direito premial, que já existe em casos de corrupção - corruptor ou corrompido pode denunciar o ato ilícito até 30 dias após ter acontecido..Mais reservas têm António Campos (histórico socialista e fundador do PS) e o ex-deputado Renato Sampaio. "Leio, mas não acredito, que o Partido da Liberdade que tanto me custou a ajudar a fundar proponha o método fascista do bufo no sistema judiciário democrático", escreveu, na sua página no Facebook, António Campos..Já Renato Sampaio, atualmente líder da concelhia do Porto do PS, escreveu na mesma rede social: "Hoje somos surpreendidos com um guião de combate à corrupção que envergonha qualquer democrata e socialista." "A delação premiada será um quisto na democracia, que se transformará na prática de mentes doentes em bufos pidescos." E "os juízos especializados não serão mais do que os tribunais plenários do antigo regime" pelo que "só faltará mesmo uma polícia especializada para regressarmos aos tempos da PIDE e instalada na António Maria Cardoso", acrescentou o ex-deputado..Dúvidas e perguntas sem reposta.Não foi só no espectro partidário que as intenções da ministra Francisca van Dunem foram alvo de interrogações e pedidos de esclarecimentos sobre o que se pretende..A Ordem dos Advogados é uma dessas entidades. Ao DN, o ainda bastonário Guilherme Figueiredo - que esta sexta-feira (13 de dezembro) não foi reconduzido no cargo perdendo a eleição para Menezes Leitão - sublinhou não poder comentar muito o tema pois "não se percebe bem a configuração do que são as propostas. Nem todas são coerentes umas com as outras. A delação premiada é diferente do acordo com o arguido na fase de inquérito e do acordo na sentença"..Tem, todavia, uma certeza: "Temos de perceber o que quer dizer delação premiada. A experiência de outros países demonstra que tem sido utilizada em prejuízo de terceiros, o próprio sistema judicial enfraqueceu a sua transparência. Se for como a experiência que conhecemos [Brasil] estamos contra. Podemos estar a caminhar para um percurso de investigação criminal sem salvaguardar os direitos, liberdades e garantias.".Alerta que também é feito por Manuel Ramos Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. "Uma delação/denúncia tem de ter controlo, para se saber se foi obtida de forma lícita e clara. Não pode ser negociada entre o MP, a polícia e o arguido com o propósito de obter informação que de outra forma não se conseguia. Tem de estar garantido o contraditório. A pessoa denunciada tem de ter todas as possibilidades de se defender. Um sistema como o do Brasil em que se investiga à pesca com base em delações, não", acrescenta, lembrando: "No Brasil, a denúncia não é sujeita a contraditório. Isso é inconstitucional em Portugal.".E é para esta questão que alerta a investigadora Teresa Violante. Lembra que o sistema brasileiro foi inspirado no norte-americano onde a "possibilidade de negociar entre todos os atores é levada até às últimas consequências. Aí admite-se a negociação não só da pena mas também do crime que está em causa. Os magistrados norte-americanos não têm o dever de isenção e imparcialidade que o Ministério Público tem na Europa continental, aqui tem de ser imparcial"..Quanto à eventual inconstitucionalidade da figura de justiça negociada refere que o "sistema tem de ser modelado" e exemplifica com a experiência alemã onde o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão e em 2003 ordenou um inquérito ao modo como o regime é aplicado no país..Defende que uma eventual alteração na Constituição que possibilite ao TC analisar recursos - a apresentação de uma "queixa constitucional" - sobre questões relacionadas com direitos, liberdades e garantias poderia ajudar nesta discussão ou então uma alteração na legislação que permitisse o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de questões de "matéria de facto". Teme ainda que esta discussão ofusque "os problemas estruturais" dos tribunais..António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, chama a atenção para o facto de "não podermos fazer juízos sobre uma coisa que não existe. Somos a favor de um aprofundamento do direito premial. Os denunciantes têm de ser protegidos. O grupo de trabalho é que deve apontar caminhos"..Portugal tem, mas....Atualmente, no combate ao tráfico de drogas (Decreto-Lei n.º 15/1993), ao terrorismo (Lei n.º 52/2003), corrupção e criminalidade económica (Lei n.º 36/1994) e no artigo 374-B, n.º 2 a, do Código Penal, estão previstas algumas formas de colaboração. Porém, a legislação portuguesa não prevê a negociação entre a acusação e a defesa. O que existe é a possibilidade de o corruptor ou o corrompido ser dispensado de pena se denunciar um ato de corrupção até 30 dias após o delito. Também está previsto uma atenuação de pena caso o arguido colabore até ao final do julgamento em primeira instância, mas sempre sujeito à apreciação das provas que permitiu obter por parte de um juiz..Crimes hediondos. O início da delação.Esta colaboração dos arguidos com a justiça começou no Brasil em 1990 com a entrada em vigor da Lei dos Crimes Hediondos - n.º 8072, 25 de julho de 1990 -, era presidente da República Fernando Collor de Mello. No seu artigo 1 eram explicados a que crimes se referia: latrocínio (roubo que resulta em homicídio), violação, atentado violento ao pudor, envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte e de genocídio. Mais tarde foi incluída nesta lista a organização criminosa..Como funciona o sistema no Brasil.O sistema judicial brasileiro prevê que quem colabore com uma investigação possa beneficiar de um perdão judicial, redução de pena até 2/3 ou a substituição da pena por uma restrição de direitos. A lei exige que a colaboração seja voluntária e o "prémio" só será efetivo se dessa ajuda resultar a identificação de cúmplices, a revelação da forma como a organização criminosa funcionava e a sua estrutura, a prevenção de crimes e a recuperação dos lucros obtidos com essa atividade criminosa. A negociação é feita entre o arguido, o seu advogado, a polícia e o Ministério Público..Dos EUA a Itália. Há vários exemplos.Sim. Países como os Estados Unidos, Japão, Itália, Canadá, Austrália ou Inglaterra, por exemplo, têm esta possibilidade prevista na lei. Nos EUA é conhecida como plea bargain, existe desde 1977 e é utilizada em praticamente todos os processos judiciais. Neste caso quem aceita colaborar passa a ser testemunha no caso e pode beneficiar de redução de pena, o crime de que está acusado pode ser alterado, por exemplo. Itália é outro país que tem previsto esta figura. Os casos mais mediáticos envolveram elementos da máfia que decidiram colaborar com a investigação. O juiz Giovanni Falcone foi quem levou à introdução do direito premial na legislação quando investigava as organizações mafiosas.