Tragédia de Borba. O que se sabe e o muito que ainda falta saber

Na segunda-feira, 19 de novembro, um troço de cerca de 100 metros da antiga EN255 simplesmente desapareceu. Com o deslizamento de terra, duas viaturas e uma retroescavadora foram arrastadas para o fundo de uma das pedreiras de Borba que ladeiam a via municipal. Há duas mortes confirmadas e três desaparecidos
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Quando é que tudo aconteceu?

São 15:45 de segunda-feira, 19 de novembro. Parte da antiga EN255, que liga Borba a Vila Viçosa, desaparece. Uma extensão de cerca de 80 a 100 metros da via municipal é engolida para o fundo de uma pedreira, com água lamacenta. Com o deslizamento de terras o troço da estrada ruiu e com ela foram arrastados para a o poço da pedreira um carro ligeiro, uma carrinha de caixa aberta e uma retroescavadora. As autoridades confirmam dois mortos e três desaparecidos na sequência do deslizamento de terra, que originou "deslocação de uma quantidade muito significativa de rochas, de blocos de mármore e de terra para o interior de uma pedreira", relatou o comandante distrital de Operações de Socorro (CODIS) de Évora.

Quando foi resgatado o corpo da primeira vítima?

Quase 24 horas depois da tragédia, na terça-feira, 20 de novembro, o corpo de uma das vítimas mortais foi resgatado. O corpo de Gualdino Pita, de 49 anos, que foi autopsiado na Medicina Legal do Hospital de Évora e entregue à família na quarta-feira. No mesmo dia, decorreu o funeral para o cemitério de Santiago Maior, no concelho de Alandroal. Gualdino Pita era funcionário da A.L.A de Almeida, uma empresa que explora uma das pedreiras que ladeia a estrada 255, e estaria na retroescavadora com João Xavier, de 58 anos, a segunda vítima mortal.

Quantos desaparecidos há e quem são?

Entre os três desaparecidos do deslizamento de terra que fez ruir parte da EN255 estão dois cunhados. José Rocha, de 53 anos, conhecido como o Zé Algarvio, e o cunhado Carlos Lourenço, de 37 anos. Também viviam em Bencatel, tal como Gualdino Pita, cujo corpo foi resgatado da pedreira no dia seguinte ao acidente. Um terceiro desaparecido seguia num automóvel ligeiro. Fonte da GNR dá conta ainda de que um homem de 80 anos, residente no Alandroal, está dado como desaparecido desde segunda-feira à noite, mas o seu nome não foi revelado.

Ministério Público abre inquérito e PJ no terreno

No dia a seguir ao deslizamento de terra que fez parte do torço da EN255 na zona de Borba desaparecer, o Ministério Público instaura um inquérito ao trágico acidente que provocou duas vítimas mortais, as únicas confirmadas oficialmente. "O Ministério Público instaurou um inquérito para apurar as circunstâncias que rodearam a ocorrência", refere a Procuradoria-geral da República na terça-feira.

No local da tragédia marcaram presença elementos da equipa do Laboratório de Polícia Científica (LPC) da PJ, bem como uma equipa composta por inspetores da Unidade Local de Investigação Criminal de Évora, disse à Lusa fonte policial.

As averiguações estendem-se tanto às pedreiras atingidas como ao colapso da estrada.

"Estamos numa fase inicial da investigação", referiu a mesma fonte policial, ressalvando que o processo está em segredo de justiça.

Governo ordena inspeção às pedreiras

Dois dias depois do trágico acidente na antiga EN255, o Governo dá 45 dias para que sejam inspecionadas as pedreiras na zona de Borba. Em comunicado, divulgado na quarta-feira, o Ministério do Ambiente e da Transição Energética determina "que, no prazo de 45 dias, a Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), proceda a uma inspeção ao licenciamento, exploração, fiscalização e suspensão de operação das pedreiras situadas na zona onde ocorreu o acidente do dia 19 de novembro".

Que outras consequências teve a derrocada?

Devido ao deslizamento de terra que fez ruir parte da estrada 255, Vila Viçosa está sem água nas zonas altas. Conforme o DN noticiou na quarta-feira, a derrocada danificou de forma significativa a conduta adutora de água provocando o seu colapso parcial. A autarquia apelou à população que restrinja o consumo ao estritamente essencial, de modo a que não haja maiores quebras no abastecimento. Ao fim da tarde desta quinta-feira a situação mantinha-se.

Quantos são os meios envolvidos na operação de "grande complexidade"?

São mais de 60 operacionais no terreno, dos quais estão elementos da Proteção Civil, do LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil), bombeiros e seis elementos da Marinha. Estes últimos juntaram-se às operações de resgate na pedreira de Borba na manhã desta quinta-feira. Dos elementos da Marinha, três são mergulhadores e estão equipados com um veículo, operado remotamente, que é dotado de um sonar, que tem capacidade para mergulhar até 40 metros de profundidade.

O sonar faz a propagação do som na água, captando o seu reflexo para detetar objetos submersos, tratando-se de uma operação que é novidade para a Marinha, mais habituada a trabalhar em rios e mar.

Trata-se de uma "operação de grande complexidade", afirmou o comandante distrital de Operações de Socorro de Évora, José Ribeiro. Pode mesmo demorar semanas até estar concluída. "Temos que ir colocando bombas de forma faseada para garantir que a água drenada não vai causar constrangimentos a jusante na linha de água", explicou.

A partir de hoje, e segundo anunciou o comandante José Ribeiro, os trabalhos poderão decorrer durante o dia e noite.

Quem são os responsáveis pela estrada?

Em 2005, a estrada EN255 deixou de ser nacional e passou para jurisdição municipal. Ou seja, deixou de estar sob alçada das Estradas de Portugal e a sua gestão, manutenção e fiscalização passou para a esfera das Câmaras Municipais de Vila Viçosa e Borba. Mas o local onde o troço da antiga EN255 abateu pertence à autarquia de Borba.

O presidente da câmara de Borba, António Anselmo, afirmou estar de "consciência tranquila". Disse que "há pedreiras dos dois lados" da estrada "há muito tempo" e a via "teve sempre a mesma dimensão" e, por isso, "não acredita" que "pedreiras licenciadas possam ter posto em perigo a estrada".

Assumiu, no entanto, que depois de se "saber concretamente o que é que se passou" e se a autarquia "tiver alguma responsabilidade", seria assumida. "Quem a tem sou eu, lamentavelmente. Não quero ter responsabilidades com mortes, mas não fujo a coisa nenhuma", sublinhou. Assegurou, contudo, que "nunca na vida" foi avisado sobre o grau de insegurança em que estava a via que ruiu na segunda-feira".

Insegurança na estrada 255 já tinha sido abordada?

Pelo menos há quatro anos que se sabia das fragilidades existentes na zona onde ocorreu a tragédia. Em 2014, foi realizada uma reunião com a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), à época um organismo tutelado pelo Ministério da Economia, na qual participaram empresários das pedreiras e António Anselmo, já presidente da câmara de Borba. Nesse encontro "foi defendido o encerramento da Estrada 255, e foram inclusivamente propostas alternativas de forma a permitir o acesso às empresas e população", disse o Ministério do Ambiente ao DN. "Não cabe nas atribuições da DGEG executar o que foi proposto nessa reunião", explica o ministério, sendo que a última vistoria à pedreira onde ocorreu o deslizamento de terra foi em 2016.

Confrontado com esta reunião, o autarca de Borba confirmou que "houve uma reunião há quatro ou cinco anos" e garantiu que "o que foi falado na reunião será público na altura certa e com atas e tudo aquilo que foi dito".

O que dizem os empresários?

Os industriais do setor dos mármores em Borba garantem a "tragédia podia ter sido evitada", aludindo ao facto das zonas de risco estarem identificadas há vários anos. Luís Sotto-Mayor, administrador da Marmetal, recorda essa reunião de 2014.

"Pretendíamos ter condições para trabalhar em segurança, mas na altura não houve consenso. Éramos uns dez industriais e alguns disseram-nos que não estávamos bons da cabeça. Isto era expectável", diz o empresário ao DN, alertando ainda para "o comportamento geológico e as fraturas geológicas que existem e que podem aparecer em função da água que está nas pedreiras", sem esconder o "embaraço" que a continuidade da estrada tem gerado entre empresários e trabalhadores que diariamente utilizavam a via.

Luís Sotto Mayor recordou ainda que os técnicos de Geologia pertencentes ao Ministério da Economia, chegaram a alertar que a estrada poderia desabar a qualquer momento "como aconteceu agora". "Estava no escritório e quando ouvi o estrondo pensei logo que tinha sido a estrada", sublinha.

José Batanete, outro industrial com exploração junto à estrada, que entretanto vendeu, recorda como na reunião de há quatro anos até foram apresentadas alternativas para circulação automóvel na zona, fazendo um desvio da estrada para uma ala mais consolidada. "Entretanto, como costuma ser usual neste país, as coisas, pelos vistos, caíram todas em saco roto, até à tragédia que se verificou na segunda-feira", frisou, em declarações à Lusa.

Quantas pedreiras existem na região?

A licença de utilização das pedreiras é da responsabilidade da Direção-Geral de Energia e Geologia. As que ladeavam a estrada que ruiu começaram a funcionar em 1989, confirmou ao DN o Ministério do Ambiente, acrescentando que apenas uma, a Olival Grande São Sebastião, está ativa. A Carrascal JS está suspensa de lavra. Finda a exploração, o explorador "terá de dar cumprimento ao PARP [Plano Ambiental e de Recuperação Paisagística].

Das mais de 350 explorações existentes nesta região do país, a esmagadora maioria (72%) estão desativadas.

Um diagnóstico feito em 2016 pela Direção-geral de Energia e Geologia sobre as pedreiras no Alentejo concluiu que das 371 explorações existentes na região 24 não tinham licença de exploração, embora esse processo estivesse em curso para uma parte delas.

No concelho de Borba, onde ocorreu o acidente, de um total de 55 pedreiras - 54 dedicadas à extração de mármore - apenas 5 (9%) permaneciam ativas em 2016.

No conjunto das 251 inativas em toda a região, 143 estavam em situação de abandono e só 47 tinham autorização de suspensão.

O que o primeiro-ministro disse sobre a tragédia?

Na quarta-feira, o primeiro-ministro falou sobre a tragédia de Borba ao garantir que "o Governo não sabia que a zona onde se deu o acidente estava em risco". Aos jornalistas, António Costa falou na necessidade de se "apurar responsabilidades" e afirmou que foi ordenado um inquérito para apurar se houve falhas de procedimentos por parte da Direção-Geral de Geologia e Energia.

O que falta saber?

São muitas as perguntas ainda sem respostas desde que ocorreu a tragédia de Borba, na tarde de segunda-feira. Desde logo, porque é que nunca foi encerrada a estrada 255, tendo em conta que se sabia dos perigos que esta via, ladeada por pedreiras, acarretava, pelo menos, há quatro anos. Falta saber quem são os responsáveis pelo atual estado da antiga EN255 e por se ter deixado a atividade das pedreiras chegar tão próximo da estrada.

As pedreiras em Borba, onde ocorreu o deslizamento de terras, foram licenciadas em 1989 sem cumprir as zonas de defesa, pois "já existiam nas condições encontradas", informou à Lusa o Ministério do Ambiente e da Transição Energética.

"Ou seja, as pedreiras já existiam nas condições encontradas, não sendo tecnicamente possível afastá-las para os 30 metros da zona de defesa. Todavia, perante a situação de facto, considerou-se que o respetivo licenciamento permitiria impor a adoção de medidas ao nível da segurança da exploração", refere o ministério. Esclarece ainda que, com exceção das pedreiras mais antigas e já existentes, todos os licenciamentos de pedreiras respeitam as zonas de defesa previstas na lei, que a partir de 1990, um ano depois de ambos os licenciamentos das pedreiras em causa, fixou os 50 metros como zona de defesa para as estradas nacionais ou municipais.

Com Filomena Naves, Lina Santos, Roberto Dores e Lusa.

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