Racismo na PSP: "Agora quando ando na rua e vejo polícias tenho medo"

As duas testemunhas do Ministério Público ouvidas nesta terça-feira no julgamento dos 17 agentes da esquadra de Alfragide contrariaram a versão dos polícias, mas também a delas próprias em anteriores depoimentos, e a de uma das vítimas.
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Jaílza Sousa e Neuza Correia são testemunhas que o Ministério Público (MP) chamou para atestar a sua versão dos acontecimentos no bairro da Cova da Moura, a 5 de fevereiro de 2015, que contraria a dos agentes da PSP da esquadra de Alfragide. Os polícias estão a ser julgados pelos crimes de tortura, sequestro e ofensas à integridade física graves, motivados pelo racismo. Segundo a acusação do MP, Jaílza e Neusa foram atingidas por balas de borracha disparadas pela shotgun de um dos agentes, na altura em que Bruno Lopes, uma das seis vítimas, era agredido pelos polícias na mesma rua. A defesa dos PSP nega esses disparos e situa a detenção do jovem numa rua do lado oposto do bairro.

As contradições nos depoimentos das duas mulheres agudizaram a clivagem entre as duas exposições, mas ficou claro que Jaílza e Neuza foram atingidas pela shotgun naquele dia e num local diferente do que é alegado pelos arguidos. Segundo o operacional da shotgun, foi disparado um único tiro para o ar e noutra zona do bairro para dispersar uma multidão que arremessava pedras à carrinha policial. Recorde-se que foi depois da detenção de Bruno Lopes que, segundo o MP, outros cinco jovens o foram procurar à esquadra de Alfragide, tendo sido agredidos violentamente e injuriados com expressões racistas. Duas destas vítimas faziam parte, na altura (uma ainda faz), da Associação Moinho da Juventude, que presta apoio social no bairro.

Principais contradições evidenciadas nestes testemunhos: nenhuma viu Bruno Lopes a ser agredido com um bastão e ficar ensanguentado, conforme este contou em tribunal (viram socos, chapadas e pontapés); Jaílza terá dito no depoimento à PJ que estava a apanhar a roupa e agora disse que estava a limpar o chão com uma esfregona (isto valeu-lhe a ameaça de um processo-crime por falsas declarações); Neuza viu quatro polícias com "caçadeiras", quando o MP alega que era apenas um o autor dos disparos; Neuza terá dito na PJ que depois dos incidentes foi ao Jumbo com a irmã e uma amiga, nesta terça-feira disse que foi trabalhar (será alvo de processo por falsas declarações, da parte da defesa dos polícias).

Notoriamente nervosa, Jaílza, 33 anos, não conteve as lágrimas quando a sua memória voltou às recordações daquele dia. Tinha ido buscar o filho mais cedo à escola porque estava doente, deitou-o no quarto e foi à varanda apanhar a roupa. Depois pegou na esfregona para limpar o chão daquele espaço e foi nessa altura, contou ao tribunal, que viu a carrinha chegar e estacionar ao lado do café do senhor Vitorino. Os agentes saíram e "começaram a revistar umas pessoas e depois encostaram o Bruno à parede. Um polícia deu-lhe um pontapé para lhe abrir as pernas e deu-lhe chapadas. Depois foram mais três para cima dele a dar socos e pontapés. Ouvi alguém gritar "não faz isso, não se faz" (Neuza, que estava na rua) e de repente vejo um polícia a apontar a arma para mim e a disparar. Acertou-me aqui no peito (aponta para o lado direito) e pensei "já morri". Depois recuei e abri as pernas para o meu filho, que tinha acordado, não vir para ali. Levei mais um tiro na perna", relatou.

O procurador do MP, Manuel das Dores, perguntou porque tinha a polícia disparado contra ela se tinha sido Neuza a gritar. "Isso é uma pergunta que faço todos os dias a mim desde esse dia. Antes sentia-me muito segura na rua. Ia ao hospital, encontrava um grupo de polícias e havia uma agente que me acompanhava sempre. Agora quando ando na rua e vejo polícias tenho medo", confessou.

Mas foi quando começou a contar que tinha visto o polícia que disparara "apanhar umas coisas do chão" (cartuchos e buchas), e que isso lhe despertara a atenção para que fosse procurar mais e apanhar para guardar, que o sobrolho da juíza presidente, Ester Pacheco, começou a franzir. Jaílza entregou à PJ, responsável pela investigação que sustentou a acusação do MP, um cartucho e três buchas que diz terem sido disparados nessa altura. "Então a senhora diz que foi baleada, entra em pânico e diz "já morri". Nessa circunstância como é que ainda há espaço na sua cabeça para ver o local onde estavam a cair as munições? Não poderá ter apanhados outras munições?", questionou a magistrada. "Como vi o polícia apanhar achei que era importante e quis ir apanhar também", respondeu Jaílza. A perícia da PJ confirmou que estes tinha sido disparadas da shotgun da PSP.

Neuza Correia, 32 anos, contou que ia a subir a rua com a irmã e uma amiga quando viu os polícias. "Começaram a revistar umas pessoas e depois encostaram o Bruno à parede. Um deu-lhe uma chapada, outro um murro, outro um pontapé. Os três a bater ao mesmo tempo. Comecei a gritar "não faz isso, isso é abuso, não faz isso. Levei com uma bala [bago de borracha] na cara e fugi". Diz que se escondeu debaixo de um carro com a irmã e a amiga até que o dono de uma oficina da rua lhes abriu a porta para se esconderem. Viu várias polícias com caçadeira (pelo menos cinco) e também não viu Bruno ser agredido com um bastão. Nem viu sangue.

O procurador do MP tentou clarificar o número de caçadeiras e tiros que Neuza viu e ouviu. Neuza insistiu no relato contrariando a acusação do MP, de Bruno e da Jaílza, que dissera haver um único agente com shotgun. Garantiu que, ao contrário do que disseram os polícias, Bruno não ofereceu resistência na detenção nem houve ninguém a apedrejar os agentes.

A juíza-presidente informou que "no limite" pretende terminar este julgamento "até ao Natal". O MP tem mais de três dezenas de testemunhas.

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