Presidente do Supremo salva juiz do acórdão da mulher adúltera da pena mais pesada
"Violação do dever de correção" -- é esta a expressão usada pelo Conselho Superior de Magistratura para designar a infração disciplinar cometida por Joaquim Neto de Moura na redação do acórdão que ficou conhecido como "da mulher adúltera". Por essa violação, que incluiu, num acórdão de outubro de 2017, invocar a Bíblia, a lapidação de adúlteras e o Código Penal de 1886 -- o qual previa uma pena mitigada para os homens que matassem as mulheres que lhes fossem "infiéis" -- e ainda acusar de "deslealdade e imoralidade sexual" a vítima, para justificar a manutenção de pena suspensa para dois homens que sequestraram e agrediram brutalmente uma mulher que fora esposa de um e mantivera com o outro uma relação extraconjugal, o juiz terá uma advertência registada.
Para vencimento desta pena, que é a mais leve, preponderou o voto de qualidade do presidente do Supremo, António Piçarra, por inerência presidente do Conselho Superior de Magistratura (CSM), já que havia quatro votos a favor da advertência e quatro a favor da pena de multa (que é a que se segue à advertência em termos de gravidade).
Como na votação de dia 29, que afastou a possibilidade de arquivamento do processo contra Neto de Moura, o este órgão que superintende a judicatura dividiu-se. Mais uma vez só estavam presentes 15 dos 17 membros; sete, que tinham votado a favor do arquivamento do processo, abstiveram-se. Foram os oito que quiseram que Neto de Moura fosse sancionado a dividir-se ao meio. O vice-presidente do CSM, Mário Morgado, votou com o presidente, ou seja, a favor da pena mais leve.
Já a juíza desembargadora Luísa Arantes, que coassinou o acórdão em causa, viu o processo disciplinar contra si arquivado por 11 votos contra quatro "por se ter entendido que não lhe era exigível demarcar-se formalmente de expressões que não integrava o núcleo essencial da fundamentação, antes constituindo posições da responsabilidade pessoal e exclusiva do relator." Luísa Arantes, de acordo com o Expresso, terá confidenciado a colegas que nem lera o acórdão.
Apesar de terem sido identificados vários acórdãos -- de 2016 e de 2010 -- nos quais Neto de Moura usou o mesmo tipo de "justificação" ou "argumentação" para desvalorizar casos de violência doméstica sobre mulheres, sempre alegando o "adultério" real ou suspeitado da vítima como "causa" das agressões, o CSM decidiu só se debruçar sobre o mais recente, de outubro de 2017. Questionado pelo DN sobre o facto, ou seja, por que motivo não tinha em conta que se trata de uma prática reiterada por parte do magistrado, aquele organismo não respondeu.
Outro aspeto por esclarecer é que tipo de proposta foi feita ao plenário pelo relator nomeado na reunião de 29 de janeiro, já que, aparentemente, terá havido duas penas à escolha.
"Acho que foi importante ter havido esta condenação porque tem um efeito simbólico. Creio que será a primeira vez que há uma condenação e sanção disciplinar por alguma coisa que um juiz escreveu numa decisão judicial." É assim que Inês Ferreira Leite, professora de Direito Penal e membro da associação feminista Capazes, a qual apresentou ao CSM uma participação contra Neto de Moura e Luísa Arantes e dinamizou uma petição assinada por mais de 28 mil pessoas sobre o caso, reage à decisão. "E é natural que não tenha havido unanimidade - porque era a primeira vez, é inédito, e são sempre decisões controversas. Não fico particularmente chocada com o facto de terem aplicado uma advertência."
A consequência da decisão, crê Ferreira Leite, "parece que fica claro que juízes têm toda a liberdade de expressão fora dos tribunais mas na elaboração de uma sentença, que é um documento oficial no qual o Estado se pronuncia sobre um determinado caso, está a falar em nome do Estado e do povo, de forma que tem de ser coerente com a Constituição e a lei. E que é censurável usar aquelas justificações e expressões. Queremos obviamente que os juízes tenham liberdade de decisão, mas uma fundamentação como a usada é intolerável à luz daquilo que são as concepções sociais e contrária à Constituição."
Como o DN noticiou esta terça-feira, a Convenção de Istambul -- Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica --, ratificada por Portugal, proíbe, no seu artigo 42º, que "nos procedimentos penais iniciados em consequência da prática de qualquer um dos atos de violência abrangidos pelo âmbito de aplicação da presente Convenção, a cultura, os costumes, a religião, a tradição ou a pretensa "honra" não sirvam de causa de justificação para esses atos. Isto abrange especialmente as alegações segundo as quais a vítima teria transgredido regras ou hábitos culturais, religiosos, sociais ou tradicionais de conduta apropriada."
No seu relatório de 21 de janeiro sobre Portugal, o Grupo de Peritos sobre a Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica do Conselho da Europa (GREVIO), referiu "vários relatos nos media [portugueses] sobre decisões judiciais nas quais se considera que motivos do perpetrador, como o ciúme, foram ocasionados pelo comportamento da vítima e justificam uma pena reduzida", e advertiu: "Por mais excecionais que estes casos possam ser, o legislador português deveria sublinhar que em nenhum caso pode a 'honra', incluindo a 'honra' de um homem alegadamente posta em causa por uma mulher, justificar crimes."
Uma advertência que parece servir como uma luva a vários acórdãos assinados por Neto de Moura, como aquele que lhe valeu a advertência em causa, e no qual se lê: "O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse ato a matasse"; "Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida. Por isso, pela acentuada diminuição da culpa e pelo arrependimento genuíno, podia ter sido ponderada uma atenuação especial da pena para o arguido X. As penas mostram-se ajustadas, na sua fixação, o tribunal respeitou os critérios legais e não há razão para temer a frustração das expectativas comunitárias na validade das normas violadas"; "O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher."
Já em 2016, o mesmo Neto de Moura escrevia numa outra decisão sobre violência doméstica: "Permita-se-nos esta referência bíblica: «Assim é o caminho de uma mulher adúltera: ela comeu e esfregou a boca, e disse: "Não cometi nenhum agravo"» (Provérbios 30:20). E, ainda, esta do sábio rei Salomão: «Quem comete adultério . . . é falto de boa motivação" (Provérbios 6:32). Uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral. Não surpreende que recorra ao embuste, à farsa, à mentira para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos. Que pensar da mulher que troca mensagens com o amante e lhe diz que quer ir jantar só com ele "para no fim me dares a subremesa"? Isto, está bem de ver, enquanto o companheiro ficaria a cuidar dos filhos menores do casal...».
O juiz poderá recorrer da pena que lhe foi aplicada para a secção de contencioso do Supremo Tribunal. O seu advogado afirmou à Lusa que tenciona fazê-lo.