Infração disciplinar de Neto de Moura ainda pode ser arquivada
"O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse ato a matasse. (...) Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida. Por isso, pela acentuada diminuição da culpa e pelo arrependimento genuíno, podia ter sido ponderada uma atenuação especial da pena para o arguido X. As penas mostram-se ajustadas, na sua fixação, o tribunal respeitou os critérios legais e não há razão para temer a frustração das expectativas comunitárias na validade das normas violadas."
Estas considerações, constantes num acórdão de outubro de 2017 assinado pelo juiz desembargador Joaquim Neto de Moura, como relator, e pela juíza desembargadora Luísa Arantes, do Tribunal da Relação do Porto, foram consideradas "infração disciplinar" pelo Conselho Superior de Magistratura. Este, numa votação a 29 de janeiro na qual só estavam presentes 15 dos seus 17 membros, votou contra o arquivamento do processo disciplinar movido ao juiz em dezembro de 2017, por uma escassa margem: oito/sete. Agora, a proposta de um novo relator será votada. Se a sanção proposta -- porque necessariamente haverá uma sanção proposta, uma vez que o arquivamento foi rejeitado -- não for aprovada, porém, o processo será arquivado.
"Constituem infração disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os atos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções", estatui o Estatuto dos Magistrados Judiciais. O CSM considerou pois que Neto de Moura violou os seus deveres profissionais.
No comunicado sobre a votação de dia 29, o CSM frisou o caráter inédito da situação: "O CSM ponderou que a censura disciplinar em função do que se escreva na fundamentação de uma sentença ou de um acórdão apenas acontece em casos excecionais, dado o princípio da independência dos tribunais e a indispensável liberdade de julgamento, circunstancialismo que se considerou verificado no caso vertente, em virtude de as expressões em causa serem desnecessárias e autónomas relativamente à atividade jurisdicional."
O inspetor que instruiu o processo, e cuja argumentação não é conhecida, terá proposto pena de multa, a segunda mais leve entre as possíveis, que incluem advertência, transferência, suspensão e exoneração. Como se sabe, o primeiro relator nomeado não concordou e propôs o arquivamento. A escassa margem da primeira votação e a incógnita sobre o sentido de voto dos dois membros do CSM que não estiveram presentes a 29 de janeiro e poderão estar hoje deixa, como disse um magistrado ao DN, "tudo em aberto" -- "A montanha pode parir um rato."
Também o resultado do processo disciplinar à juíza Luísa Arantes está por determinar. Recorde-se que, segundo o Expresso, a juíza terá confidenciado a colegas que não leu o acórdão todo antes de o assinar.
Um relatório de 21 de janeiro do Grupo de Peritos sobre a Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica do Conselho da Europa, que analisa a comformidade da legislação portuguesa e da prática dos tribunais com a Convenção de Istambul, frisa que o artigo 42º da dita convenção "inclui uma proibição clara das justificações historicamente usadas para atos de violência contra as mulheres, incluindo a violência doméstica. (...) A atitude de culpabilização da vítima que o artigo 42º visa eliminar refere-se precisamente a séculos de estereotipação judicial através da qual os tribunais desconsideraram a violência e reduziram penas baseando-se no preconceito de que a vítima foi responsável pela violência de que foi alvo. Há vários relatos nos media [portugueses] sobre decisões judiciais nas quais se considera que motivos do perpetrador, como o ciúme, foram ocasionados pelo comportamento da vítima e justificam uma pena reduzida. Por mais excecionais que estes casos possam ser, o legislador português deveria sublinhar que em nenhum caso pode a 'honra', incluindo a 'honra' de um homem alegadamente posta em causa por uma mulher, justificar crimes."
A socióloga Isabel Ventura, autora autora de uma tese de doutoramento - Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação Sexual - sobre a forma como os tribunais portugueses desvalorizam a violência sexual contra as mulheres, comentou ao DN: "Como é que há sete votos de vencido de membros do CSM no sentido do arquivamento de algo que é especificamente proibido por uma convenção ratificada por Portugal que diz que não podem ser usados quaisquer argumentos relacionados com honra ou motivos religiosos para desculpabilizar um agressor?"
O DN solicitou ao CSM esclarecimentos sobre os processos em causa, nomeadamente sobre se Neto de Moura já teria tido oportunidade de apresentar a sua defesa -- o advogado que representa o juiz afirmou, a 29 de janeiro e após a votação do CSM, que não -- e, caso não o tenha feito, se há risco de prescrição. Foi ainda perguntado qual o prazo de recurso da decisão (o arguido pode recorrer para a secção de contencioso do Supremo Tribunal). Mas até agora não obtivemos resposta do CSM.