Hells Angels libertados. Como uma simples tradução para sueco começou a tempestade
Primeiro um intérprete que não entregou a tempo a acusação traduzida para um detido sueco. Depois dois tribunais declararam-se incompetentes. Estes foram os principais fatores a provocar a derrapagem fatal do prazo para a instrução do megaprocesso de crimes violentos contra o gangue Hells Angels - que terminaria a 18, daqui a uma semana - e nesta segunda-feira foram libertados 37 dos 40 detidos há ano e meio, por excesso de prisão preventiva.
A 18 de julho deste ano, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), titular do inquérito por parte do Ministério Público (MP), acusou 89 arguidos - portugueses, romenos, ingleses, alemães, holandeses e suecos - pela prática de crimes de associação criminosa, tentativa de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma, ofensa à integridade física, extorsão, roubo, tráfico de droga e detenção de armas e munições entre outros.
A instrução foi pedida por 71 arguidos e servia para o tribunal decidir se havia provas suficientes para os levar a julgamento.
A investigação da Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) na Polícia Judiciária (PJ) concluiu que os arguidos se dirigiram em março de 2018 ao restaurante Mesa do Prior (Prior Velho, concelho de Loures, distrito de Lisboa) "munidos de facas, machados, bastões e outros objetos perfurantes" para tentarem ferir com gravidade ou mesmo matar seis outros motards do grupo rival Red&Gold, que pertence à estrutura dos Los Bandidos - entre os quais se encontrava Mário Machado, ex-líder dos hammerskins portugueses e rival histórico dos Hells Angels.
A PJ reconheceu que esta investigação e as dezenas de detenções tinham sido "uma machadada na organização do grupo", que estava a ser monitorizado há 17 anos, desde que se instalou em Portugal.
As ligações deste gangue de motards à extrema-direita violenta tem sido fator de acrescida preocupação para as autoridades.
Dois dos detidos foram condenados no processo de homicídio do cabo-verdiano Alcindo Monteiro, em 1995, no Bairro Alto, caso em que também esteve envolvido Mário Machado. Tiago Palma, conhecido por "Martelos" (por ter sido atleta de lançamento de martelo), fez parte do grupo de Nuno Monteiro, outro dos detidos nesta megaoperação, que espancou violentamente vários negros nessa noite, um deles, Alcindo, até à morte.
A operação da UNCT, que levou ao maior número de detenções de sempre, em simultâneo, de membros dos Hells Angels, foi notada e elogiada nas agências policiais europeias.
A diretora executiva da Europol, Catherine de Bolle, esteve em Portugal poucos dias depois das detenções e não deixou de elogiar a operação da PJ contra os Hells Angels, que classificou de "frutuosa", assinalando a colaboração da agência e de outros países europeus.
Quando tudo parecia estar a correr bem e acalmado o alarme público que toda esta história provocou, eis que surgiu o primeiro "grão de areia na engrenagem". Nem mais nem menos que a tradução do despacho de acusação para sueco, obrigatória para notificar o detido Michel Kent Andersson, também conhecido por Michel Sweden 81.
Andersson era o presidente do chapter dos Hells Angels HAMC Southside (Cascais e Montijo) na altura dos crimes descritos pela acusação. Segundo o MP, o sueco terá usado um martelo para espancar os rivais do grupo Bandidos, além de ter participado ativamente no planeamento do ataque.
Fonte judicial que acompanhou o processo adiantou ao DN que o intérprete contratado pelo MP falhou o prazo de entrega da tradução do despacho de acusação. "Teve de ser notificado para entregar a tradução que estava a realizar. Não a entregou e foi-lhe instaurado o respetivo procedimento criminal", sublinha essa fonte.
A tradução do despacho, cuja responsabilidade era do DCIAP, só ficou concluída a 14 de outubro de 2019, quase três meses após a acusação deduzida e a um mês e quatro dias da instrução ter de estar concluída - o prazo era quatro meses.
Para a defesa de qualquer um dos detidos poder pedir a instrução do inquérito, todos os arguidos tinham de estar notificados do despacho de acusação.
"Uma das soluções que podiam ter evitado este constrangimento era extrair uma certidão do processo e tratar o caso do sueco à parte, evitando assim o pior desfecho como o que sucedeu. Infelizmente não foi esse o caminho do DCIAP", lamenta outra fonte judicial.
Entretanto, para a fase instrutória, o processo tinha sido inicialmente distribuído ao Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Lisboa, que decidiu, no início de outubro - já em cima do prazo -, declarar-se "territorialmente incompetente", remetendo-o para o TIC de Loures - comarca onde se localiza o Prior Velho, palco do ataque.
Mas este tribunal refutou o processo declarando-se também "territorialmente incompetente", reencaminhando-o para o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC).
Acabou por ser a juíza do Ticão Conceição Moreno a assumir, só a 10 de outubro, a instrução do inquérito, cujos autos são constituídos por 73 volumes e 126 apensos (alguns com dois volumes), além dos recursos interpostos.
E o tempo foi escoando, cada vez a aproximar-se mais da data-limite de 18 de novembro para concluir a instrução.
Inicialmente estava previsto que a magistrada iniciasse as inquirições de 23 dos arguidos, mas não chegou a agendar as sessões. Segundo o despacho de Conceição Moreno, a que a Lusa teve acesso, os arguidos requereram também a inquirição de várias testemunhas e a realização de diversas diligências probatórias, mas a juíza de instrução criminal deu dez dias às defesas para que, caso quisessem, indicarem a "razão de ciência e as razões de facto" que justifiquem a realização destas diligências.
Ao que o DN apurou, pouco se avançou no Ticão e tornou-se evidente que era impossível cumprir o prazo para uma decisão instrutória antes de 18 de novembro.
O DCIAP foi alertado na semana passada pelo próprio TCIC para a inevitabilidade da libertação dos detidos, e propôs as medidas de coação a aplicar após a libertação dos mesmos - com termos de identidade e residência e apresentações semanais nas esquadras de polícia a dominar.
"O MP, em obediência ao princípio da legalidade, não pode permitir que os arguidos fiquem presos para além do prazo legalmente permitido, situação que consubstanciaria uma situação de prisão ilegal, criminalmente prevista e punida. Claro que só podia promover a libertação dos arguidos e assim evitar a prisão ilegal dos mesmos", esclarece a fonte judicial.
Contactados pelo DN para esclarecerem o desfecho do processo, nem a Procuradoria-Geral da República nem o TCIC responderam.