Helena Lopes da Silva: a professora altruísta

O médico Francisco Goiana da Silva recorda a professora que morreu este sábado aos 69 anos.
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A Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) é a mais antiga Escola Médica do País. Normalmente, as instituições mais antigas são também as mais tradicionais e nesse ponto a FMUL nunca foi excepção. Diria que essa tradição assentou sempre no culto e reverência aos seus Catedráticos, os "Mestres da Medicina".

Na minha altura, já lá vão mais de 10 anos, chegávamos à Faculdade miúdos humildes mas, a frase "Vocês são a nata da nata da sociedade!" marcava o início de um processo formativo assente no valor inquestionável dos títulos académicos. Lembro-me bem de, numa das aulas do primeiro ano, um colega ter levado um raspanete em público por se ter dirigido a um Professor Catedrático daquela casa apenas por "Dr".

Foi já no meu quarto ano de curso que a Dra. Helena Lopes da Silva me calhou em sorteio. Graças a essa feliz coincidência tive o privilégio de ser seu aluno nas aulas práticas de Cirurgia Geral. Crua ao primeiro contacto, Helena Lopes da Silva foi desde o inicio motivo de comparação. À data, muitos eram os estudantes de medicina que assistiam à serie "Anatomia de Grey". Portanto, não demorou muito tempo até que corresse o boato de que a Dra. Helena Lopes da Silva era a versão nacional da "Dra. Miranda Bailey" (uma das protagonistas). Quem viu Grey's Anatomy sabe bem que esta comparação era elogiosa: competência, objetividade e, acima de tudo, compaixão para com os mais fracos (fossem eles estudantes de medicina ou doentes).

Essa compaixão cativou-me desde a primeira hora.

Recordo hoje com nostalgia o dia em que, ao entrar no bloco operatório, me posicionei onde não devia, por mera ignorância de estudante inexperiente. Fui energicamente repreendido por um elemento da equipa de enfermagem que, de resto, estava coberto de razão. No entanto, ao aperceber-se da situação, não tardou até que a cirurgiã da sala se fizesse ouvir: "Atenção que esse é um dos meus alunos! Por isso, em vez de gritarem com ele, ensinem-no! Ninguém nasce ensinado!"

A palavra "Professor" tem origem no Latim. Deriva de "Professus", que significa "pessoa que declara em público" ou "aquele que afirmou publicamente". Nesse contexto, Helena Lopes da Silva foi certamente uma das maiores Professoras que conheci na Faculdade. Não de título académico formal, pois desses havia muitos, mas por declarar e assumir, sem medo, a sua missão de proteger os seus estudantes.

Gestos públicos e genuínos de compaixão de professores por alunos eram raros dentro das paredes frias da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Não passou muito tempo até que assumi a responsabilidade de Presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa (AEFML). Nesse contexto, tomámos consciência de uma realidade preocupante: a maioria dos estudantes de medicina concluía o seu curso sem nunca ter aprendido a suturar. Como consequência, existia uma forte possibilidade de os jovens médicos virem a treinar os seus primeiros "pontos" na cabeça de um doente qualquer, já no âmbito seu exercício profissional.

Era urgente mudar essa realidade e colmatar essa lacuna formativa, por isso, foram várias as portas às quais a AEFML foi bater. Não queríamos ser médicos "amputados".

Mas não fomos capazes de sensibilizar a nossa Faculdade para a gravidade desse problema. Pouco havia a fazer.

Foi então que a Dra. Helena Lopes da Silva, Cirurgiã experiente e respeitada no Hospital, se disponibilizou a contrariar a passividade dos corpos dirigentes da Faculdade e aventurar-se onde mais ninguém queria: coordenar um curso de suturas, organizado por estudantes, em período extra curricular.

Graças à solidariedade da Dra. Helena e à sua capacidade de mobilização, não tardou até que todos os jovens cirurgiões do Hospital de Santa Maria estivessem a ensinar os estudantes da FMUL a suturar. Assim acontecia o primeiro de muitos "Workshops de suturas AEFML".

Desde então, passaram já várias gerações de jovens por estes "Workshops". Do que vou ouvindo, as limitações da Faculdade parecem não ter mudado. Há hoje ainda mais alunos para formar do que há dez anos. Felizmente, o espírito de serviço da Dra. Helena Lopes da Silva também. Mesmo depois de reformada, continuou a coordenar os "Workshops de Suturas" em regime Pro Bono.

Hoje, as notícias dos jornais falam de Helena Lopes da Silva descrevendo-a como "militante de esquerda e Conselheira de Estado de Cabo Verde". No entanto, não eram esses os "galões" que faziam da Dra. Helena uma docente especial.

Na área do altruísmo, Helena Lopes da Silva nunca precisou de um doutoramento para ser uma das melhores Professoras da Faculdade de Medicina de Lisboa.

"Continuamos a guiar-nos por princípios que achamos serem fundadores da profissão quando na realidade o único pensamento fundador da Medicina é o altruísmo."

Foi, para mim, um privilégio conhecê-la.

*médico

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