Há mesmo crise na Justiça? O presidente do Supremo Tribunal atesta que não

No seu balanço na abertura do ano judicial, o presidente do STJ apresentou os argumentos que, no seu entender, são sinais de que não há crise na Justiça. Mas avisou sobre o problema dos megaprocessos.
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António Piçarra, presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), começou por salvaguardar que a ideia que queria destacar neste ano poderia parecer "ousada" e "quicá, vir até a ser mal interpretada", mas estava disposto a assumir o risco. "A retórica da crise, ou crises, da justiça tem muitos anos. Muitas décadas", começou por dizer no início do seu discurso na cerimónia de abertura do ano judicial. "É uma retórica que se transmuta noutras expressões, como: descrédito da justiça. Ineficiência da justiça. Falência da justiça. Uma retórica replicada de forma acrítica e, por vezes, até perversa", completou.

Reconhecendo que ainda existem "problemas sérios" na Justiça, Piçarra questionou se "serão suficientes para continuar a afirmar a existência de uma crise?" ou se serão apenas "circunstanciais, ilustrativos e decorrências de uma época tão específica e distinta como a nossa, que merecem a nossa reflexão constante e exigem que sejam ultrapassados com soluções ponderadas?".

Cidadãos mais confiantes na Justiça

Olhando para os dados disponíveis, o chefe máximo do STJ pode "afirmar, com convicção, que o sistema de justiça português está equilibrado e funcional". E que dados corroboram esta conclusão? Primeiro, a "perceção pública" positiva, segundo confirma um estudo, coordenado pelo professor de Ciência Política da Universidade Nova de Lisboa, Tiago Fernandes, que indica que "a confiança nas instituições da justiça tem aumentado sensivelmente, situando-se agora nos 41%, subindo dez pontos percentuais face a avaliações de há quinze anos, sendo superior ao nível de confiança que depositam noutras instituições democráticas".

Melhor capacidade de resposta

O segundo dado objetivo, elencou António Piçarra, baseia-se na atividade processual e na capacidade de resposta do sistema de justiça. E as notícias são também boas. "Terminámos o ano com cerca de 310 mil processos pendentes de decisão judicial, quando, em dezembro de 2018, encontravam-se, nesse estado, cerca de 345 mil processos, o que corresponde a uma melhoria significativa (menos 35 mil processos)", assinalou.

Quer isto dizer, sublinha, "que na esmagadora maioria dos meses do ano de 2019 foram decididos nos tribunais judiciais mais processos do que os entrados. Isso ocorreu transversalmente em todas as jurisdições. Do cível ao penal. Do laboral ao tutelar". Não quer dizer que o número de processos pendentes não continue elevado: "No final do ano de 2018 havia cerca de 685 mil0 processos pendentes neste estado, número que, no final do ano de 2019, se cifrou em pouco mais de 625 mil. A redução é sensível, de cerca de 60 mil processos num ano, mas o peso desta pendência ainda se faz sentir".

Independência dos juízes

O terceiro argumento que, no entender do presidente do STJ, "contraria a já gasta retórica da crise na justiça" refere-se "ao quadro valorativo e dos princípios, bem como ao relacionamento entre agentes do sistema e entre instituições democráticas". Portugal, salienta, "continua a manter níveis de independência dos juízes verdadeiramente referenciais no contexto internacional. O respeito do poder político pela independência da justiça mantém-se intocado".

Recordando um "irritante" (expressão usada pelo primeiro-ministro num caso que envolveu o ex-vice-presidente de Angola) encerrado em 2019, entre o poder político de judicial, com a aprovação do estatuto dos magistrados judiciais, António Piçarra nega que a "generalidade dos juízes" tenham sido aumentados. "É importante desmistificar esta questão. Apenas alguns juízes dos tribunais superiores terão uma requalificação moderada do seu vencimento, o que se justifica no quadro de uma adequada estruturação de carreira."

Por tudo isto, conclui, "é altura de pôr termo à retórica da crise na justiça, às críticas vazias, às ideias feitas e à deslegitimação, inconsciente ou consciente, do sistema de justiça".

Megaprocessos causam tensão

O presidente do STJ identificou também "áreas de grande tensão e dificuldades notórias": a justiça económica, principalmente no que diz respeito às execuções civis, e o comércio. Há "melhorias, mas muito há ainda a fazer para dotar o sistema de racionalidade e previsibilidade generalizadas", afiançou.

A segunda área de tensão é, para este juiz conselheiro, "a mais difícil de todas", que "afetou a imagem de toda a justiça no ano de 2019" e "afetará no ano de 2020 e, presumivelmente, continuará a afetar nos próximos anos".

Tratam-se dos "processos especialmente complexos, normalmente de natureza criminal, mas que podem ser de qualquer área jurisdicional". Para Piçarra, "o sistema de justiça português tem um problema estrutural na capacidade de responder a esta realidade".

A informação a tratar é cada vez mais vasta e cresce em proporção geométrica.

O magistrado sublinha que, nestes casos, "com a nossa lei e a nossa organização", o que o juiz "pode fazer é limitado. Se tem de ouvir centenas de testemunhas e analisar milhares, ou dezenas de milhares de documentos, terá sempre que levar muito tempo. É inexorável".

As soluções não são fáceis. "Pode conceder exclusividade aos juízes a quem sejam distribuídos processos especialmente complexos e pode inteirar-se dos problemas suscitados pela produção de prova na cadência do processo e, na sequência, verificar se têm solução possível. Pouco mais pode fazer", assinala.

Dirigindo-se aos "responsáveis políticos e ao povo português", António Piçarra enfatiza que "no quadro atual não esperem da justiça outra coisa que não esta, sempre que tenha de lidar com um processo especialmente complexo".

O presidente do STJ entende que a resposta a este problema está em reforçar o quadro funcional de apoio aos juízes que "só depende da vontade política e não tem qualquer reserva de princípio". "Será sempre muito difícil compaginar nestes megaprocessos os vértices do Estado de direito democrático, como a descoberta da verdade, a realização da justiça e o direito de defesa dos arguidos, enquanto o sistema não tiver condições de lidar adequadamente com estas realidades", afiança.

Operação Marquês, Tancos, Lex, em agenda

Esta cerimónia assinala o arranque de um ano em que são aguardados o fim da instrução do Processo Operação Marquês, que determinará se o antigo primeiro-ministro José Sócrates, o seu amigo e empresário Carlos Santos Silva e o ex-presidente do BES Ricardo Salgado, entre outros arguidos, vão ou não a julgamento.

Em 2020 são ainda aguardados desenvolvimentos no processo Octapharma, no caso Lex (que já levou à expulsão do juiz Rui Rangel) e no caso de Tancos, cuja instrução se inicia a 8 de janeiro, apenas dois dias após a abertura do ano judicial, com as atenções viradas sobretudo para o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes, acusado de prevaricação e denegação de justiça no caso da recuperação de armas furtadas dos paióis da base militar de Tancos.

São esperados também evolução na instrução do processo relativo ao hacker Rui Pinto, bem como no caso do grupo motard Hell Angels, e também no julgamento do caso de Alcochete, que implicou, entre outros, o ex-presidente do Sporting Bruno de Carvalho.

O evento ocorre numa altura em que importantes investigações - caso BES/GES, operação Lex, caso TAP, processo EDP (que envolve o ex-ministro Manuel Pinho e o presidente da EDP, António Mexia) - ainda não saíram da fase de inquérito, e em que processos como o do BPN se prolongam e arrastam em recursos sem trânsito em julgado à vista.

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