Diário de um infetado: "Por uns dias, a minha relação com Deus esfriou"
Estava a seguir os números da COVID19 na China, mas não pensei que fosse um risco avançarmos para Madrid, no final de fevereiro, para uma viagem marcada com família e amigos. Nesse momento, em Espanha, só estavam 13 casos diagnosticados. Então, eu, a minha mulher, uns tios, primos e amigos fomos todos juntos à feira de arte contemporânea ARCO - onde vamos todos os anos. Caramba, qual seria a probabilidade de nos cruzarmos com alguém infetado? Havia tão poucos...
De qualquer forma, levámos o álcool - que passávamos nas mãos várias vezes ao dia, como se fosse um protetor infalível. E não usamos máscaras porque nos pareceu uma precaução excessiva. Em Madrid, aliás, o ambiente estava perfeitamente normal.
Na Chueca a movida Madrilena continuava tão exuberante como sempre; as galerias de arte nas várias exposições que visitámos continuavam como se não se passasse nada e, no fundo, ninguém poderia imaginar que um inimigo invisível estava a espalhar-se entre todos, num ambiente internacional ideal para a sua expansão implacável. Como nos filmes sobre doenças, que começam antes de se revelar a verdadeira dimensão da tragédia. Mal sabia eu, quando regressei a Portugal no dia 1 de março, que o meu corpo já estava a travar a luta com o vírus.
Os primeiros sintomas tive-os na sexta-feira, dia 6 de março, mas não lhes dei atenção. Algum frio ao final da tarde, típico de uma constipação ou gripe que se avizinha. No sábado, atingiu-me em cheio: fiquei de cama, com febre, alguma tosse e por mais que tentasse aproveitar e pôr as séries em dia, o cansaço era de tal ordem que adormeci várias vezes sem conseguir ver um episódio sequer. Mas, por surpreendente que possa parecer, no dia seguinte sentia-me muito melhor. Até pensei em ir ao ginásio. O que, felizmente, não fiz. Nesse dia, os meus dois filhos mais novos ficaram de cama. Febre baixa e cansados, mas nada que nos pudesse dar a entender tratar-se de uma nova e grave doença que se anunciava.
E foi também nesse Domingo que soubemos que o meu tio, que tinha ido connosco a Madrid, tinha sido internado no Hospital com uma pneumonia. Apesar de suspeitar que pudesse ser o covid-19, não queria acreditar. Como é que era possível tanto azar? De qualquer forma, por precaução, passei a dar boleia à nossa empregada - que poderia estar infetada, por contacto connosco, e tive receio que andasse nos transportes públicos a propagar a epidemia. Aquilo que na altura parecia uma decisão exagerada, hoje parece uma decisão óbvia. Mas não foi fácil convencê-la.
Na terça-feira, dia 10, ironicamente, em plena reunião de discussão de um plano de contigência para o covid, na minha empresa, recebi um telefonema que atendi porque suspeitei imediatamente qual seria a notícia: sim, o meu tio estava infetado com o coronavírus, já ligado ao ventilador e era nesse momento o primeiro caso grave em Portugal. (Felizmente está em recuperação acelerada)
Avisei as outras pessoas da empresa e fui de imediato para casa. Só já dentro do UBER é que tomei consciência que talvez fosse contagiar também o condutor e os passageiros depois de mim, mas já era tarde demais para sair do carro. Liguei para a Saúde 24 e ao fim de algum tempo, talvez uns 20 minutos consegui ser atendido. Do outro lado, sempre muito cordiais, diga-se, foram ouvindo a minha história. A ligação à cadeia de transmissão do meu tio e os meus sintomas, que na altura eram já só alguma tosse e catarro. Apesar disso, tentaram persuadir-me a que não havia necessidade de fazer um teste.
Mas eu queria muito fazer o teste e fui muito persuasivo e insistente. Precisava de ter a certeza por causa dos meus filhos e para poder avisar todas as pessoas com quem tinha estado na última semana. A minha grande preocupação era pensar que devido a mim, iria haver pessoas que ficariam infetadas e que por sua vez iriam contagiar outras, com consequências potencialmente mortais. Felizmente, alguém da DGS achou por bem eu fazer o teste e fi-lo logo nesse mesmo dia, no Hospital Curry Cabral.
Quando lá cheguei, estava uma equipa de reportagem da televisão, à caça de notícias, que eu evitei discretamente, não fossem eles querer entrevistar-me. Ia de máscara e deambulei pelos pavilhões do hospital até encontrar a receção certa. A rececionista colocou uma máscara e muito simpaticamente foi-me levar à porta das traseiras que só abria por dentro. Quando batemos à porta, pediram-nos para aguardar pois os médicos e enfermeiros estavam a equipar-se.
Entrei e deparei-me com algo que só tinha visto nos filmes: 4 ou 5 médicos e enfermeiras vestidos com fatos, luvas, máscara, óculos e viseira, e receberam-me com os mesmos cuidados como se eu tivesse Ébola. Aparentemente, devo ter sido um dos primeiros a fazer o teste ali, pois claramente eles estavam a rever os procedimentos e todos estavam com bastante receio. Enfiaram-me numa sala pequena, enquanto decidiam quem iria entrar. E eu, fechado nessa sala, sentado na única cadeira da sala, oiço alguém lá fora dizer que, uma horas antes de mim, tinha lá estado uma holandesa que tinha tossido tanto que eles nem sabiam o que fazer. Levantei-me de um salto e tomei consciência que talvez não tivesse sido assim tão boa ideia ir fazer o teste, pois mesmo que eu não estivesse, quando saísse, certamente estaria infetado. E foi então que um médico - corajoso - entrou, e enfiou-me um cotonete gigantesco pelo nariz acima e uma zaragatoa na garganta. Cá fora, ouvia as observações e comentários dos outros.
Voltei para casa, e enquanto aguardava os resultados, os meus últimos dias passavam-me pela cabeça, revia, como num filme de terror, com quem tinha almoçado, com quem tinha conversado, onde é que tinha ido... Na manhã seguinte, o médico do Curry Cabral que me fez o exame ligou-me a informar que o resultado tinha dado positivo para o coronavírus e informou-me que eu devia dirigir-me nessa tarde para o hospital para ser internado.
Pronto: eu era agora um dos 41 infetados em Portugal. Era notícia, sem nunca querer sê-lo. Tinha apanhado uma doença que tentara evitar, mas obviamente de forma não totalmente eficaz. Quando cheguei ao Hospital, veio outro médico fantástico receber-me. Estava também totalmente equipado da cabeça aos pés, explicou-me que eu ficaria no quarto isolado e que iriam minimizar o número de vindas ao quarto, apenas duas, para entregar comida e fazer limpeza. Retirou-me duas seringas de sangue para análise, ensinou-me a medir a minha própria tensão e a temperatura, a colocar no dedo um medidor da oxigenação do sangue, e explicou-me que eu teria que fazer isso algumas vezes ao dia, quando me solicitassem e comunicar os resultados pelo intercomunicador. Em termos de tratamentos, não havia nada a fazer: apenas ben-u-ron caso tivesse febre, pois tem que ser o próprio sistema imunitário a combater o vírus.
O médico saiu e fiquei com muito tempo para pensar. Revi a minha semana e falei outra vez com o SNS 24, dando os contactos de todas as pessoas com quem tinha estado. Cheio de sentimentos de culpa, liguei a cada uma das pessoas com quem tinha estado na semana anterior a alertar para a situação. Uma tinha dado uma festa de anos com os amigos e a família entre os quais os avós. Outra tinha ido com a irmã fazer tratamentos oncológicos ao hospital. Outro, a mulher está a recuperar de um cancro, entre outros. O cenário não era simples. Mas felizmente, todas as pessoas foram extremamente calmas e compreensivas.
Sou profundamente católico e ao longo da minha vida tenho a felicidade de já ter tido algumas provas da existência de Deus, mas é sempre difícil compreender os seus planos e a sua justiça quando algo como uma coisa assim surge e nos toca tão próximo. Se há vida há morte, se há morte há sofrimento e a única coisa que existe para minimizar o sofrimento é o Amor; o amor a nós próprios e aos outros. Mas, confesso que, durante uns dias, a minha relação com Deus esfriou... por um lado não conseguia aceitar o azar de ter sido eu e tantas pessoas próximas de mim as escolhidas para ter esta doença. Por outro sentia-me interesseiro ao rezar, mesmo com esse sentimento de injustiça. Mas o que é que os seres humanos podem fazer quando não há nada a fazer? Apenas rezar e acreditar que os milagres acontecem...
No hospital Curry Cabral todos os médicos, enfermeiras e empregadas foram inexcedíveis a tentar animar-me e é nestas alturas que percebemos que quem trabalha na Saúde o faz mesmo por vocação, para ajudar o próximo, mesmo a arriscar a vida. Sempre que alguém entrava no meu quarto, vinha devidamente equipado, e nunca descurava os procedimentos: antes de sair do quarto deitava fora um dos pares de luvas que trazia e passado uns 5 minutos alguém vinha desinfetar a antecâmara. De alguma maneira estava mais tranquilo ao saber que, se piorasse, estava no sítio certo para ser tratado. E, surpreendentemente, a comida era ótima. Fiquei convencido de que os nossos médicos e enfermeiras são, sem dúvida, dos melhores do mundo e que fazem milagres mesmo com os poucos recursos que têm.
Ao fim de dois dias, depois de verem que o meu Raio X não assinalava pneumonia, enviaram-me para casa. Entretanto, o número de infetados tinha triplicado desde que eu tinha feito o teste e, provavelmente, o meu quarto era mais importante para alguém numa situação crítica. Quando voltei para casa os meus filhos estavam um pouco assustados com a situação e o meu cão olhava para mim com um ar desconsolado sem perceber porque é que de um dia para o outro deixara de passear com ele e de lhe fazer festas. Em casa fiquei isolado no meu quarto, afastado da minha família e da minha mulher. Isto tem sido uma prova de amor fantástica, e não é de somenos que ela tenha de tratar de tudo sozinha e ainda trazer-me a comida à porta do quarto - inventámos um esquema, ela toca no tabuleiro de um lado, e eu do outro.
Mas aqui, fechado, e com muito tempo para pensar, preocupa-me os idosos, aqueles que daqui para a frente vão viver com o medo de apanharem o covid-19, que vão ter medo de abraçar os netos ou dar beijinhos, especialmente aqueles que estão em lares que para além de deixarem de ter as poucas visitas que tinham se arriscam a ter ainda menos pessoal para cuidar deles. E no fim, existe sempre o risco de um funcionário ter o azar de colocar a mão num poste de um transporte público onde, momentos antes, sem a menor consciência disso, um infetado com o corona vírus colocou a mão que tinha anteriormente colocado à frente da boca enquanto tossia. O que aprendi é que isto é mesmo muito aleatório.
Como é a minha especialidade, preocupa-me também o impacto que esta crise terá na Economia. Nunca como até agora houve uma crise em que o ajustamento tivesse que ser tão rápido. De um dia para o outro desapareceram as receitas e mantiveram-se os custos. Qualquer pessoa lúcida percebe que sendo 99,9% do tecido empresarial PMEs, com margens de lucro residuais em tempo normal, sem receitas irão morrer em 2 ou 3 meses, se tanto. E não há muito que os donos das empresas ou o governo possam fazer em relação a isto, pois neste momento não existe outra alternativa.
Na minha opinião, os impactos do coronavirus ficarão entranhados na nossa sociedade por muitos anos. Eu, por exemplo, acho que nunca mais irei cumprimentar ninguém nem com apertos de mão, nem com beijinhos, tal foi o sentimento de culpa com que fiquei de ter podido contagiar alguém. Por outro lado, vão ficar coisas algumas boas: acredito que a partir de agora algo que muitos de nós fazíamos por estupidez que era ir trabalhar doente ou ainda em convalescença vai deixar de acontecer. Vamos trabalhar muito mais à distância - de um dia para o outro quase todas as empresas de serviços se tornaram 100% digitais e acredito que vamos apreciar mais a vida, os momentos em família, as idas à praia e os jantares com os amigos. E os abraços e os beijos vão ter ainda mais valor.
Ontem fui fazer novamente o teste ao Curry Cabral. Passaram duas semanas do primeiro, e é impressionante o que o hospital se alterou neste curto espaço de tempo. Fui recebido num hall logo à entrada do hospital por uma equipa de 15 ou 20 médicos e enfermeiros, todos devidamente equipados, todos bem organizados, todos com um ar confiante de quem está pronto para a guerra.
Hoje soube que o meu teste deu negativo e faço agora parte dos sortudos que recuperaram do maldito coronavírus.
* o autor prefere não ser identificado com o seu nome.