Covid-19 em Portugal. "É natural que se iniciem cadeias de transmissão"

A confirmação dos primeiros casos do novo coronavírus, em Portugal, não é uma surpresa e a experiência internacional diz-nos que podem aumentar nos próximos dias. Mas "consegue-se prevenir muito bem a transmissão deste vírus", alerta a infeciologista Margarida Tavares.
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Portugal registou, esta segunda-feira, os dois primeiros casos de infeção pelo novo coronavírus. Trata-se de um médico, de 60 anos, que esteve de férias no norte de Itália e de um trabalhador de Valência, Espanha, de 33 anos. Estão ambos a receber tratamento no Centro Hospitalar Universitário do Porto. "E agora, o que muda?", perguntou o DN à médica Margarida Tavares, que trabalha no serviço de doenças infecciosas no Hospital de São João, no Porto, e integra a equipa preparada para receber os doentes suspeitos de serem portadores do vírus, que surgiu na cidade chinesa de Wuhan, no final do ano passado.

O que muda com o aparecimento do primeiro caso de covid-19 em Portugal?
Não muda muito, para já. Era perfeitamente previsível, à luz do que aconteceu nos outros países; podia até ter sido há uma semana. Temos dois casos importados de uma zona onde existe transmissão na comunidade [Itália e Espanha]. Se nós tivéssemos um infetado aqui, em Portugal, que não tivesse estado noutra zona, seria mais preocupante, o que não quer dizer que não venha a acontecer. É natural que se iniciem cadeias de transmissão e nós estamos à espera disso.

Tendo em conta a experiência dos outros países, é previsível que surjam mais casos nos próximos dias?
Exatamente. Nós temos uma estrutura de saúde, seguimos regras idênticas aos outros países europeus e foi isso que aconteceu nos outros sítios.

Que regras são essas?
O que nós temos de fazer é tentar protegermo-nos de contágios ocasionais e inesperados. Consegue-se prevenir muito bem a transmissão deste vírus: temos de lavar frequentemente as mãos, porque o vírus transmite-se por contacto. Por outro lado, é importante o afastamento dos doentes, manter uma certa distância e evitar aglomerados desnecessários. Em vez andamos a cumprimentar as pessoas com beijinhos e apertos de mão, fazemos um gesto de cordialidade. Não há transmissão de coronavírus na nossa comunidade por enquanto, mas assim também nos começamos a treinar para a época que pode estar aí à porta.

A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, falou, durante a conferência de imprensa desta manhã (onde foram anunciados os casos positivos), sobre um trabalho de "detetive" por parte das autoridades de saúde. Tem assistido a estes passos?
Nas doenças infeciosas, esse trabalho de detetive, que no fundo se chama inquérito epidemiológico, é feito em muitas circunstâncias. Há uma colaboração entre os colegas da saúde pública, que estão no terreno, e nós [no hospital] no sentido de apurar o maior número de informações sobre os contactos próximos dos doentes. Isto para podermos precocemente implementar medidas eficazes na eliminação ou na mitigação do risco, quebrando cadeias de transmissão. É um processo já conhecido nos casos de tuberculose, por exemplo.

Como funciona a ala de resposta ao novo coronavírus no Hospital de São João?
Nós temos um serviço com 27 camas e há ainda uma unidade de cuidados intensivos com seis camas. Nesta lotação, existem nove quartos com pressão negativa. O que é que isso significa? Dentro do quarto é criado um vácuo, uma filtração de ar, para que quando se abre a porta não saía ar, mas entre sempre. As partículas respiratórias que estão dentro destes quartos não saem para o corredor, o que permite aos profissionais de saúde - devidamente equipados - entrar com todo o à-vontade. Temos outras enfermarias também com este tipo de ventilação especial.

Há quartos no piso térreo e num piso alternativo, com ligação através de um elevador privativo. Temos um local para nos vestirmos e circuitos definidos no chão para não nos equivocarmos nos sítios para onde andamos: há zonas vermelhas (onde pode haver presença de vírus), amarelas (de transição) e verdes (que têm de estar sempre limpas). Tudo funciona com normalidade. Nós cuidamos muitíssimo bem dos doentes, somos muito carinhosos, apesar de o nosso fardamento ser um bocadinho distante.

E se a procura aumentar muito, a resposta está preparada?
Ninguém está preparado para uma coisa que pode ser excessiva. Nós vamo-nos preparando no dia-a-dia e vamos encontrando formas de suprir as necessidades que vão surgindo, vamos criando mais planos. Estou convicta - tal como aconteceu na Gripe A e nós tivemos muitos casos dessa gripe - que será possível ultrapassar isto. A maior parte das pessoas infetadas vão ter sintomas muito ligeiros. Nós agora estamos a dizer às pessoas para virem cá [ao hospital], mas dentro de pouco tempo estaremos a dizer para ficarem em casa. É como uma gripe normal. Não há nenhuma terapêutica específica para fazer, é só baixar a febre, hidratar-se, alimentar-se, descansar e proteger os outros da doença. Isto terá de acontecer para nós mantermos a capacidade de tratar os casos graves.

Esteve envolvida no combate à Gripe A (2009). Quais são as principais diferenças que nota entre uma e outra epidemia, a partir da sua experiência?
Nós já tivemos muitas epidemias de gripe. Quando começámos a preparar o plano de contingência para a epidemia de gripe, sobretudo a partir de 2005, conhecíamos muito bem três pandemias do século passado, havia modelos. Mas no caso do coronavírus, há aqui algumas diferenças, porque nós conhecemo-lo mal. Os outros dois coronavírus que nós conhecemos [a sars e a mers] portaram-se de forma muito diferente em termos de reservatório animal. ​​Só conhecemos os coronavírus simples, da comunidade, que podem estar ligados a simples resfriados. Deste, não sabemos qual vai ser a virulência e a taxa de letalidade, ou seja, o número de mortos associados.

Qual é a taxa de letalidade neste momento?
Neste momento, está estimada à volta de 3%. Por cada 100 pessoas doentes, três podem morrer. É baixa, mas não é insignificante.

Nos últimos dias temos tido notícia de uma diminuição do número de infetados na China. A Europa vai acompanhar esta perspetiva?
Não acredito que na Europa o pico já tenha passado. E depois não sabemos se esta epidemia vai ter uma onda ou mais ondas. Depois das medidas robustas que a China tomou pode assistir a uma diminuição dos infetados, mas mesmo assim é possível que venha uma onda posterior. Na Europa ainda estamos no início. No entanto, o continente europeu tem uma capacidade de resposta excelente, em geral, e provavelmente vamos consegui achatar o pico da onda, mesmo que seja prolongada pelo continente. Temos possibilidade de lidar com isto bem.

E quem já registou análises negativas depois de ter estado infetado, pode estar descansado?
Se deixarem de ter sintomas, as pessoas devem ficar três ou quatro dias resguardadas por precaução, mas depois se fizerem análises e estas forem negativas (como aconteceu com o primeiro português infetado no Japão), isso dá-nos uma segurança importante.

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