Cocaína. A droga que já foi de elite é a que mais circula em Portugal
É um fenómeno que tem vindo a ganhar dimensão, ano após ano, obrigando as autoridades a redobrar atenção e meios. A cocaína deixou de ser uma droga de elite, cara e de difícil acesso ao consumidor comum. Democratizou-se, de certa maneira, como mostram os últimos relatórios da Polícia Judiciária (PJ) e o próprio RASI (Relatório Anual de Segurança Interna), a que o DN teve acesso. Os dados revelam um aumento de 75% de apreensões de cocaína em Portugal, só no ano passado, traduzindo-se em cerca de 10 toneladas. Mas esta é uma curva ascendente. Só este ano já foram apreendidas mais de seis toneladas, a maioria antes do início da pandemia.
Este aumento de circulação - e apreensão de grandes quantidades de cocaína - não é inédito, mas é preciso recuar até aos anos de 2005/6 para encontrar picos semelhantes. Com uma diferença: nessa altura continuavam a circular muito mais outro tipo de drogas, como a heroína, que tem vindo paulatinamente a decrescer.
O relatório produzido anualmente pela Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes (UNCTE), relativo a 2019, aponta para perto de 10 toneladas de cocaína, a maioria apreendida pela PJ. Artur Vaz, diretor da Unidade, recorda que este fenómeno não ocorre apenas em Portugal, mas também em Espanha, Bélgica, Brasil, entre outros. A explicação vem precisamente da América do Sul, após o processo de paz na Colômbia, em que a produção de cocaína disparou. "Sabemos que tem vindo a aumentar de ano para ano", admite aquele responsável. Em tempo de pandemia, a produção não parou, e o preço [lá] baixou.
As organizações criminosas "reorganizaram-se rapidamente", sublinha Artur Vaz, explicando que "segundo alguns relatórios de organismos internacionais, o mercado europeu será o maior, a nível mundial, quando falamos da cocaína". Já vão longe os tempos em que os Estados Unidos da América lideravam nesse mercado de tráfico e consumo.
O aumento da produção gerou entretanto uma reação por parte das autoridades policiais. "Ao longo dos anos a polícia também tem ganho outro tipo de eficiência e eficácia no combate a esse tipo de tráfico", diz ao DN Artur Vaz, sublinhando que o grosso das apreensões em Portugal continua a ser por via marítima.
Os dados já disponíveis destes primeiros meses de 2020 deixam antever que as apreensões não param de aumentar. Até à passada sexta-feira, eram já mais de seis toneladas de cocaína apreendida, a maioria "no período pré pandemia", como esclarece o diretor da UNCTE. Nesse dia, a PJ destruiu cerca de cerca de 4,5 toneladas de vários tipos de drogas ilícitas, apreendidas nos últimos meses em diversos inquéritos, assinalando, dessa forma e simbolicamente, o Dia Internacional contra o Abuso e o Tráfico Ilícito de Estupefacientes, instituído pela Assembleia Geral da ONU através da Resolução 42/112, de 7 de dezembro de 1987.
Em Portugal, de acordo com a legislação em vigor, "a droga apreendida é destruída logo após a realização dos competentes exames periciais, por parte do Laboratório de Polícia Científica, com exceção de uma amostra, que fica depositada em cofre, até que seja proferida decisão definitiva, no âmbito do processo, à ordem do qual se realizou a apreensão".
A destruição fez-se por incineração, na presença de um Magistrado do Ministério Público, de um funcionário de polícia de um perito do Laboratório de Polícia Científica.
Mas a PJ aproveitou o dia para revelar outros dados no que respeita à atividade de combate ao tráfico ilícito de estupefacientes desenvolvida já este ano. Os números mostram que, além da cocaína, há outra droga que está no topo das apreensões: a nível nacional foram já apreendidas cerca 11,5 toneladas de haxixe, as tais 6 toneladas de cocaína e quantidades menores de diversos outros tipos de drogas.
"Estes resultados são fruto da ação da Polícia Judiciária e das demais forças e serviços de segurança, bem como dos serviços aduaneiros, com competências em matéria de prevenção e repressão do fenómeno do tráfico ilícito de estupefacientes", refere uma nota do Gabinete de Comunicação da PJ.
Frequentemente, sobretudo no âmbito de tráfico internacional marítimo, "é igualmente fundamental a colaboração prestada pela Marinha e pela Força Aérea Portuguesas, bem como a crescente cooperação e articulação da Polícia Judiciária, com as autoridades de outros países e com diversas organizações internacionais", salienta a PJ. Artur Vaz sublinha que Portugal não é uma das principais portas de entrada, mas é, ainda assim, bastante utilizada.
"A PJ tem vindo a redobrar esforços. Nós não somos o único nem um dos principais, mas somos um ponto importante de entrada no continente europeu", frisa, certo de que, quando falamos do conjunto de 10 toneladas apreendidas no ano passado, ou das seis deste ano, "apenas uma pequena parte seria para Portugal".
O diretor daquela unidade da PJ enfatiza ainda a importante colaboração da plataforma internacional Maritime Analysis and Operations Centre, que funciona em Lisboa - e de que fazem parte sete países: Portugal, Itália, Espanha, França, Reino Unido, Irlanda e Holanda. "O objetivo centra-se especificamente no combate ao tráfico por via marítima", utilizando, em tempo real, a partilha de informações relevante para o combate ao tráfico, bem como a partilha de meios aeronavais.
Numa altura em que as diversas entidades analisam agora os resultados do RASI (Relatório Anual de Segurança Interna, cuja versão definitiva ainda não foi publicada), o diretor da UNCTE chama a atenção para a necessidade de não ficarmos apenas pelas quantidades de droga apreendidas, mas também pelo número de operações. No que respeita ao haxixe, por exemplo, "este ano já mais se duplicou a quantidade apreendida no ano passado). Ou seja, só neste primeiro semestre a PJ contabilizou 11,5 toneladas de haxixe, enquanto no ano passado não chegou às 5,5 toneladas.
Produzido em Marrocos, uma pequena parte do haxixe utiliza a mesma rota que a cocaína: a costa portuguesa. Embora a maioria continue a entrar por Espanha, como sugere o responsável da PJ. "Nós já tivemos anos em que apreendemos mais de 60 toneladas de haxixe", acrescenta, fazendo a analogia com as operações da PJ no final da primeira década de 2000. "Isso tem muito a ver também com a organização das redes criminosas, que nos últimos anos têm estado muito viradas para Espanha". Mas fruto da pressão que as autoridades espanholas imprimiram, no ano passado - chegando ao ponto de proibir a circulação de lanchas rápidas - a situação alterou-se. Percebe-se assim que as redes se voltem para Portugal, "o que nos obriga a redobrar os esforços de ação", afirma Artur Vaz.
Os relatórios coligidos das diversas entidades apontam também para outro dado: a diminuição das apreensões de heroína - menos 48,6% no ano passado, quando comparado com 2018, o que equivale a 46 kg. E desses, apenas pouco mais de 14 kg resultaram das 197 apreensões a cargo da PJ.
A canábis aparece no relatório de segurança interna como a segunda droga de maior tráfico e consumo em Portugal. Também no relatório da PJ os números registam diminuição: 3.232,99 kg de canábis apreendidos no ano passado, o que traduz uma diminuição de 22,53% face a 2018.
"Portugal não é um país de produção, exceto no que respeita à canábis, tendo sido ao longo dos anos desmanteladas plantações, normalmente de reduzidas dimensões, destinadas a satisfazer o consumo local", conclui o RASI.
De acordo com um decreto-lei de 85 reforçado pela lei orgânica da Polícia Judiciária, várias entidades têm competência em matéria de prevenção e repressão. Porém, em matéria de investigação, não é apenas a PJ que a ela se dedica. A GNR e PSP também fazem, dentro de um determinado quadro. "Não há uma confusão de competências", adverte Artur Vaz, sendo que as duas forças de segurança se dedicam mais a acompanhar o tráfico local de distribuição direta aos consumidores. E isso compreende-se, na medida em que ambas têm forte implantação territorial, e "têm outra informação do terreno".
Ainda assim, toda a informação é inserida numa única base de dados. Porém, há uma fatia que falta neste bolo de dados: "a partir de meados de junho de 2017, a PSP, por decisão unilateral sua, deixou de enviar à PJ/UNCTE os formulários TCD que servem de base ao tratamento estatístico das apreensões de estupefacientes e das detenções de presumíveis traficantes não enviando também os respetivos autos de notícia, situação que se manteve ao longo dos anos de 2018 e de 2019", refere o relatório da PJ relativo a 2019. "Por esse motivo, os dados estatísticos que serviram de base à elaboração do presente relatório são necessariamente incompletos, não refletindo a totalidade dos resultados obtidos a nível nacional em matéria de luta contra o tráfico ilícito de estupefacientes", conclui o documento.
O RASI de 2019 - cuja versão definitiva ainda não foi publicada - sublinha como o tráfico de estupefacientes continua a ser "área tradicional de atuação do crime organizado. Portugal tem sido um país de destino final de vários tipos de drogas, para abastecimento dos circuitos ilícitos internos e também um país de trânsito de importantes quantidades de haxixe e de cocaína provenientes de Marrocos e da América Latina, respetivamente". Neste ponto, ambos os relatórios batem certo. Já no que toca às quantidades, há ligeiras discrepâncias: o RASI fala de 9,766 toneladas de cocaína, o relatório da PJ ultrapassa as 10 mil.
A distribuição interna é normalmente assegurada "por estruturas criminosas organizadas, que frequentemente são responsáveis pela importação das drogas que distribuem. Por regra são estruturas extremamente flexíveis, constituídas por um número reduzido de membros, muitas vezes ligados por laços familiares, que se socorrem de terceiros indivíduos. Normalmente pessoas vulneráveis (toxicodependentes ou indivíduos em situação de extrema carência económica), para executarem o trabalho mais arriscado, como o transporte da droga, a sua guarda e a entrega aos consumidores", pode ler-se no relatório.
"Mantêm-se estruturas criminosas envolvidas nos segmentos do tráfico internacional, em regra, altamente organizadas, dispondo em território nacional de células de apoio logístico tendentes a facilitar a introdução da droga no espaço europeu". O RASI sustenta ainda que a função destas células varia consoante o modus operandi utilizado, as rotas e a quantidade de droga traficada, sendo frequente a utilização de embarcações e tripulação nacionais no transporte de grandes quantidades de cocaína e de haxixe, bem como a utilização de sociedades de direito português na importação de cocaína, dissimulada em cargas de contentores dos mais variados tipos de produtos.
Apesar do apertado controlo das autoridades às deslocações por via aérea, "as organizações criminosas continuam a socorrer-se das ligações regulares, existentes entre a América lLtina e Portugal para, de forma rápida, introduzirem quantidades significativas de cocaína no espaço europeu, o que fazem com recurso à utilização de "correios de droga" ou "mulas"". É fácil perceber que a pandemia trará outras conclusões quando for elaborado o relatório de 2020.
O RASI de 2019 sublinha que mantém-se a tendência crescente relativamente à utilização da internet, "em especial da darknet, para a comercialização de drogas ilícitas e de novas substâncias psicoativas, frequentemente com recurso à via postal". Mas a grande conclusão é esta: a cocaína passou a ser a droga mais traficada, seguida da canábis.