Caso Cova da Moura: "Se fosse eu, tinha-te dado um tiro na cabeça"
Mais de três anos depois das agressões que alega ter sofrido na esquadra de Alfragide, ainda há momentos e expressões que Celso Lopes, de 36 anos, não esquece. Já após o encaminhamento para o Hospital da Amadora, onde foi tratado pelos disparos por balas de borracha no joelho no dia 5 de fevereiro de 2015, e a caminho do centro de detenção, o antigo morador da Cova da Moura lembra o momento em que um agente lhe pediu para parar de fingir que estava com dores. Celso respondeu que "se (o policia) tivesse levado um tiro à queima roupa também não estaria a fingir" e o que lhe foi dito por este deixou-o, disse, "chocado": "Se fosse eu, tinha-te dado um tiro na cabeça".
Esta foi a segunda vez que Celso Lopes, membro da Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ), foi ouvido em tribunal, depois de terem sido já presentes ao coletivo de juízes Flávio Almada e Bruno Lopes, outras alegadas vítimas no caso pelo qual estão a ser julgados 17 agentes da PSP por racismo, tortura e difamação. O jovem voltou a lembrar o momento em que sentiu os dois disparos, sendo o segundo o que lhe causou ferimentos graves no joelho. "Fui aguentando a dor, dizendo para mim mesmo 'isto não é nada', porque uma das coisas que aprendemos no bairro é que uma mentalidade forte pode mudar muita coisa", faz questão de sublinhar.
O julgamento desta terça-feira ocorre no mesmo dia em que é divulgado um relatório da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância (CECRI), em Estrasburgo, que denuncia a polícia portuguesa por ter elementos simpatizantes de discursos de ódio, racistas e homofóbicos. O documento enuncia, inclusive, o presente caso da Cova da Moura.
"O doutor André pouco ou nada fez ali. No meu entendimento, terá sido porque até ele sentiu a pressão do ambiente ali dentro. Ele também sentiu que ali a justiça não se faria valer", recorda Celso, sobre o primeiro encontro que teve com o advogado, no regresso à Esquadra de Alfragide, momentos que ficaram por relatar no anterior julgamento.
Assim que chegou ao estabelecimento policial, viu aquele que viria a saber ser seu advogado. André Ferreira não se terá apresentado de imediato, mas quando percebeu o estado de saúde do jovem fez pressão para que fosse chamada à esquadra uma equipa médica. Celso lembra a chegada dos paramédicos, "três ou quatro pessoas", mas destaca uma paramédica - brasileira, garante, e com "grande cumplicidade para com os agentes" - que ficou "logo em estado de choque quando os viu feridos e sob tamanha pressão". "Mas muito rapidamente foi chamada ao gabinete do chefe da esquadra. Quando ela sai, sai com uma postura completamente diferente", mais serena e a querer despachar o assunto, contou.
Apesar das dores, o antigo morador da Cova da Moura não teve consciência da gravidade dos seus ferimentos até ao momento em que a paramédica o faz descer as calças. "Só aí consegui ver a dimensão dos danos", começa por dizer, emocionado, entre muitas paragens no discurso. "Se há coisa que eu nunca fiz foi provocar danos a ninguém. A minha mãe educou-me o melhor possível", continua, sensibilizado, até ser interrompido pela presidente do coletivo, Ester Pacheco, que lhe pediu que se voltasse a focar apenas em contar os factos.
Naquele momento, frisa, "todos os agentes perceberam o que fizeram e começaram a segredar. Toda a gente ficou parva. Mas mesmo assim o agente que me baleou não mostrou qualquer tipo de arrependimento".
O jovem foi, então, imediatamente transportado para o Hospital da Amadora. Já no hospital, diz ter-se sentido tratado como um "criminoso", porque o agente não saía do seu lado. Entretanto, o enfermeiro que lhe estava a fazer o curativo ter-lhe-á dito "podes falar, podes dizer, que aqui não há problema", mas o medo apoderou-se de Celso, que na altura se manteve em silêncio.
A primeira conversa individual com o advogado acontece no regresso à esquadra de Alfragide, numa sala à parte. Foi também nessa altura que o ofendido terá, pela primeira vez, sido chamado pelos agentes para partilhar os seus dados pessoais, nomeadamente as habilitações literárias. "Quando disse que tinha o 12º ano e qual a minha profissão, houve uma reação de 'isto não faz sentido'", explica, "e a verdade é que quando apresentaram o auto final para nós assinarmos, não estava lá a minha escolaridade e eu estava indicado como desempregado".
No julgamento desta terça-feira, Celso Lopes lembrou alguns dos momentos que relatou no anterior depoimento. E se então disse que a falta de ação de qualquer um dos agentes perante o sofrimento dos jovens o chocou, aponta agora também um novo protagonista na história que o terá marcado pela positiva.
Celso não sabe identificar de quem fala, mas começa por dizer que tudo aconteceu quando ouviu - não viu, porque a sua posição não o permitia - alguém chegar à esquadra, exigindo o nome e número de cédula dos agentes "que agrediram os miúdos". "O agente que estava na receção disse 'isso vai ter que pedir ao chefe'. O tal chefe passa por nós, dirige-se à pessoa e diz 'isso é para quê? Quem é você? Identifique-se'. Continuou a questionar o porquê e ameaçou acusar a pessoa de perturbação de ato policial", conta. Logo de seguida, terá chamado o seu "superior" e, como relata Celso, "cinco minutos depois, chegou um senhor de idade", com uma sigla na farda da qual agora já não se consegue recordar. "Ao passar disse, 'portem-se bem'", contou Celso que confirmou ao coletivo de juízes que "foi o primeiro agente que teve uma palavra carinhosa a dizer".
Mas a violência, pelo menos verbal, terá continuado quando foram transportados da esquadra para o centro de detenção, de onde seguiriam, no dia seguinte, para tribunal, para serem ouvidos pela primeira vez por um juiz. "Então vocês vieram invadir a esquadra, pretos do car...... Um dia, vamos acabar com a vossa raça. Deviam ser levados ali para onde estão os violadores, levar com o cabo de vassoura pelo rabo acima e comer comida envenenada" - é com alguma raiva que o antigo morador do bairro descreve ao coletivo a forma como um agente os terá recebido ao entrarem no edifício.
Ao ser revistado, lembra-se que da sua perna terá caído aquilo que rapidamente identificou como sendo a bala de borracha que o terá atingido e que, entretanto, terá sido "pisada e recolhida" por um agente. Depois, no regresso ao centro de detenção, os seis jovens são algemados e novamente ameaçados: "a vida é curta e nós vamos vingar-nos", terá dito um agente. Celso Lopes diz ter ficado confuso com a situação. "Então, mas nós é que estamos a ser maltratados e eles querem vingar-se?", questiona retoricamente perante a magistrada.
Primeiro Bruno Lopes, depois Flávio Almada, e agora Celso Lopes e Miguel Reis. São já quatro os ofendidos ouvidos no Tribunal de Sintra, três anos e meio depois do dia que levou ao julgamento dos 17 agentes da esquadra de Alfragide. Todos parecem, contudo, ainda não ter recuperado das marcas que aquele "inferno", como tantas vezes já intitularam, lhes causou e que se traduz em grandes cicatrizes no dia-a-dia.
Celso Lopes, à semelhança dos outros jovens, foi acompanhado em consultas psicoterapêuticas, depois de ter sido diagnosticado com stress pós-traumático. Durante dois meses, até setembro de 2017, uma vez por semana. Intervenções que interrompeu assim que abandonou o bairro Cova da Moura e mudou de casa.
A presidente do coletivo questionou Celso acerca dos efeitos que aquele dia teve na sua vida futura até hoje. Ainda emocionado, lembrou o seu percurso naquele bairro, como observador de "muitas injustiças". "Nasci num bairro onde aprendemos a lidar com as situações mais difíceis que podemos imaginar. Fui, por isso, uma pessoa sempre capaz de superar várias coisas e nunca fiquei com sequelas. Mas este episódio fez-me ficar paranóico", confessa.
O jovem relata, então, um exemplo de como os acontecimentos passados o afetaram e como, desde aí, se tem sentido perseguido. "Depois do que aconteceu, o caminho que fazia entre casa e paragem de autocarro era um constante tormento. Nunca sabia se eles iam aparecer. Eu temia pela minha vida. Não sou à prova de bala, como ficou provado".
No contrainterrogatório realizado já quase no final do julgamento, a mandatária de defesa dos arguidos voltou a questionar a vida artística dos ofendidos, como já tinha feito com Flávio, na audiência anterior. Celso foi também, em tempos, rapper, e tinha como nome artístico "Kromo(ssoma) Di Ghetto", pelo que ainda hoje é conhecido no bairro.
Quando questionado pela defesa se tinha versos contra a ação policial, respondeu negativamente e terminou a discussão com a sua apreciação sobre o tema: "A polícia é um bem necessário. Não posso jamais culpabilizar uma instituição inteira por uma situação. Não posso rotular toda a polícia nem dizer que qualquer profissional é tão culpado como aquele que fez mal ao meu bairro".
Miguel Ângelo Reis, 22 anos, um dos alegados agredidos, também começou por ser ouvido nesta audiência, mas o tempo foi escasso e o coletivo decidiu deixar o interrogatório a meio e dar-lhe continuidade na próxima sessão. No seu discurso, o ofendido corroborou todos os relatos feitos até agora pelos outros três e sobre a argumentação principal dos agentes acusados - dizem ter agido sobre Bruno depois de a carrinha da PSP ter sido atingida por pedras - Miguel garantiu ao coletivo que "ninguém atirou uma única pedra".