"A Comissão Europeia está a dizer 'nós existimos, não vamos ficar calados'"
Espanha e Portugal renovaram os respetivos estados de emergência por duas semanas, França decretou quarentena até 11 de maio; Áustria, República Checa e Dinamarca preparam-se para levantar restrições - isto enquanto a Suécia mantém a sua abordagem "descontraída" apesar de, com 10 milhões de habitantes, ter passado já a barreira dos 1200 mortos oficiais por covid-19. É uma Europa a muitas velocidades e em descoordenação a que enfrenta a pandemia.
Face a esta realidade, o roteiro apresentado esta quarta-feira pela Comissão Europeia frisa que para a Europa voltar a erguer-se tem de haver união - e coordenação. Parece ser essa a principal mensagem de Ursula von der Leyen, que frisou não haver "outra solução". Alertando para o facto de ser necessária muita cautela nos passos a dar, mantendo constante vigilância epidemiológica e sensibilizando as populações, a Comissão prescreve "respeito e solidariedade": "No mínimo, cada Estado-Membro deve notificar atempadamente os restantes Estados-Membros e a Comissão antes de levantar as medidas e ter em conta os seus pontos de vista."
Para o economista Pedro Lains, esta intervenção é uma prova de vida: "A Comissão Europeia está a dizer "nós existimos", e que não vai ficar calada. Que quando for preciso tomar decisões a sério não vão deixar as coisas nas mãos do Eurogrupo e do Banco Central Europeu. Estão a marcar o momento."
Embora não ponha de parte a possibilidade de se tratar de uma estratégia "polícia bom/polícia mau" (na qual a CE faria de polícia bom face ao Eurogrupo), este investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa admite ter "alguma expectativa em relação a Von der Leyen. "Creio que não vai deixar as coisas só na parte financeira, como aconteceu anteriormente. Até porque desta vez a crise é geral, não há uma divisão Norte/Sul." Quanto ao facto de no roteiro se especificar a necessidade de investir numa vacina, assim como na testagem em larga escala, e de "assegurar a resiliência dos serviços nacionais de saúde" - tudo ações implicando investimento avultado -, o economista considera que "a Comissão tem instrumentos para intervir e se decidir emitir títulos pode fazê-lo."
O também economista Ricardo Pais Mamede pega exatamente por aí: "A Comissão pode dar ideias, mas não apresentou até agora nenhuma forma de financiamento, e os governos têm de se debater com esse problema. Têm medo de se endividar pelo receio do que vem a seguir."
Dá um exemplo: se a CE fala, no calendário de abertura, de começar pelas escolas, é preciso ter em consideração as diferenças entre os países. "É muito diferente falar da abertura das escolas num país com professores mais novos ou mais velhos", opina este professor do ISCTE. "Creio que se se decidisse começar a reabrir as escolas neste momento em Portugal 30% dos docentes iriam pôr baixa médica por receio. Seria boa ideia abrir as escolas mas como espaço de atividades para os miúdos, o que implicaria mais pessoal e custos acrescidos. Uma estratégia de abertura das escolas custaria muito dinheiro, e Portugal está já com muitas pessoas em lay off, que custam uma fortuna à Segurança Social. Não me parece que haja dinheiro para tudo."
Para além das nada despiciendas questões de financiamento, há outras questões que se colocam sobre o "roteiro" da CE. Por exemplo a recomendação de que se "implantem testes serológicos para avaliar a imunidade adquirida da população" - ou seja, que se avance para os testes que, identificando a presença de anticorpos, permitem saber se alguém já foi infetado.
Porém, lembra o epidemiologista Henrique Barros, presidente do Conselho Nacional de Saúde e do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, há muito que ainda não se sabe. "Se os testes que identificam o vírus, os PCR, são bastante seguros, os serológicos [que procuram anticorpos] são uma incógnita. E há três aspetos que estão longíssimo de estar resolvidos. O primeiro é a saída da infeção: falava-se no início em 14 dias a partir do diagnóstico ou dos sintomas. Mas em mil e tal pessoas que vigiamos no ISP só 93 é que preencheram os critérios de recuperação, e o tempo que mediou entre sintomas e diagnóstico e negativação [de acordo com os critérios da Organização Mundial de Saúde, quando dois testes dão negativo] foi de 30 dias. E descobrimos que o RNA do vírus permanece na faringe para além desse momento. Não se sabe se permanece com capacidade de infetar mas em princípio sim, porque se mantém nas mesmas quantidades que permitiram fazer o diagnóstico."
Por outro lado, prossegue Barros, "aquilo que temos como anticorpos para este vírus é errático. Não sabemos se são neutralizantes, e não sabemos outra coisa: se a imunidade à infeção garante que a pessoa não se pode infetar se o agente, ou seja o vírus, mudar."
Isto porque, como é sabido, este tipo de vírus costuma mudar à medida que progride na epidemia. "O agente entra na comunidade, infeta uma quantidade enorme de pessoas e vai perdendo virulência. Sucede que neste caso, como se infetou muito pouca gente não sabemos que mutações podem acontecer." Pelo que, depreende-se, fazer contas à "imunidade adquirida da população" que tanto o Reino Unido como a Suécia quiseram atingir (o primeiro país entretanto já mudou de estratégia) é para já um pouco extemporâneo: "Vai acontecer, não sabemos é quando."
O pneumologista Filipe Froes, representante da Ordem dos Médicos para as questões ligadas ao novo coronavírus, corrobora. "Toda essa informação científica não está validada. Não sabemos por exemplo quantas pessoas estão infetadas - o que sabemos é que alguém que entra num hospital com um acidente de mota, por exemplo, faz o teste. Muitos dos testes que estamos a fazer reportam a pessoas que têm outro tipo de afeções, que não apresentaram qualquer sintoma do covid-19."
Concorda com os pontos fundamentais apontados pela Comissão, que passam por "acabar com as cadeias de transmissão, investindo ao máximo na suspensão da infeção [e defende para esse desiderato a utilização da máscara, já aconselhada, desde 8 de abril, pelo Centro Europeu de Prevenção de Doenças], manter uma rede de vigilância apertada, e rastrear novos casos." Aqui, no entanto, teme o uso dos telefones, usados na China e Coreia do Sul para esse efeito, um exemplo que a CE considera . "Não quero que o meu telefone se transforme no Big Brother, isto apresenta problemas muito complicados."
Lembra também a necessidade, expressa por Ursula von der Leyen, de proteger os mais vulneráveis, as pessoas a partir dos 65. Como mantê-los em casa, no entanto, se o estado de emergência for levantado e as outras pessoas começarem a voltar ao "normal" - ou a seja o que for que passe doravante por normalidade? Tal como a Comissão, Froes não tem soluções preparadas. "Serei muito exigente com os meus pacientes, e terá de se aconselhar a manutenção do distanciamento social, o uso de máscara, evitar locais com muita gente. E há, claro, o problema dos netos."
Mas no meio de tanta incerteza diz compreender o discurso da CE. "Tem de haver esperança. E temos de preparar a abertura dos países, sendo certo que as medidas são extremamente dinâmicas. Podemos por exemplo de ter de fechar fronteiras de novo, podemos abrir escolas e voltar a fechar. E as pessoas vão ter de começar a deslocar-se, mesmo entre países, mas tem de ser muito limitado, para evitar a importação de novos casos."
À possibilidade de medidas e contramedidas poderem ter o efeito de descredibilização dos decisores e até de deslegitimação - por exemplo se num caso como o de Portugal, que tem mantido baixas a mortalidade e a ocupação de camas de Cuidados Intensivos, a abertura ocasionar uma subida desses números, como o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde já disse temer - Filipe Froes contrapõe a necessidade de "autodisciplina, civilidade e sacrifício. Toda esta situação é um teste para nós próprios. E a sociedade tem estado a responder muito bem."
Henrique Barros também não vê alternativa. "Vai abrir porque temos de abrir mesmo. Claro que é preciso manter as pessoas idosas protegidas. E ter em consideração que muitas das pessoas que estão a morrer infetadas não morrem da infeção. Os italianos fizeram contas e chegaram à conclusão de que 88% não estão a morrer por causa da infeção apesar de estarem infetadas."
Considerando que medidas como as de limpeza mais frequente de espaços a abrir - recomendadas pela Comissão - fazem sentido e poderiam, se "aplicadas a sério", ter permitido manter abertos alguns dos locais que fecharam, o epidemiologista, que reúne frequentemente (por internet, evidentemente) com representantes das escolas de saúde pública europeias, adianta que "os italianos estão a pensar abrir livrarias e lojas de roupa para bebé, o que tem graça; as pessoas têm bebés e não têm o que lhes vestir". E garante que "Portugal controlou muito bem o surto porque o nosso sistema de saúde pública, apesar de alguns depauperamentos, é muito bom, digam o que disserem."