Voltar a dar esperança

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Portugal está mais perto do que nunca de reconhecer um Estado Palestiniano, sendo esse o sentido óbvio do comunicado agora divulgado pelo gabinete do primeiro-ministro, e decisão mais ou menos previsível à medida que países como a França e até o Reino Unido anunciam ir por esse caminho, reagindo à degradação total da situação em Gaza. A acontecer, será em setembro, quando se realizar a sessão anual da Assembleia Geral das Nações Unidas, momento em que habitualmente chefes de Estado e de governo de grandes, médios e pequenos países fazem questão de ir a Nova Iorque anunciar as suas prioridades diplomáticas.

Luís Montenegro, e certamente o ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Rangel, sabe que é um passo que vai provocar aplausos de muitos quadrantes nacionais, e elogios vindos de fora, mas igualmente duras críticas, antes de mais da parte de Israel, e com quase toda a certeza dos Estados Unidos, seja neste segundo caso em público ou nos bastidores. Basta ver o que o presidente Donald Trump disse quando o Canadá, aliado tradicional, país fundador da NATO tal qual Portugal, anunciou estar a preparar o reconhecimento do Estado Palestiniano. Entende-se assim a cautela com que o processo vai ser gerido, com o governo a fazer questão de envolver o presidente Marcelo Rebelo de Sousa e os partidos na tomada final de decisão.

A tradição diplomática portuguesa é promover o multilateralismo, fazer pontes, ser ouvido por uns e outros (e ouvir também uns e outros), sempre evitando tomadas de posição isoladas que destoem dos aliados tradicionais, nomeadamente no quadro da União Europeia. Em relação ao conflito israelo-palestiniano o falar com todos foi sendo tentado, com mais ou menos sucesso, também em função de quem eram os protagonistas políticos. Mário Soares foi nisso exímio, ou não fosse ele o presidente português que estava a jantar em Gaza com Yasser Arafat quando em Telavive Yitzhak Rabin, com quem o presidente português tinha almoçado antes na visita que fez a Israel, foi assassinado por um extremista judeu contrário aos Acordos de Oslo.

Dirão aqueles que não se entusiasmam com as qualidades diplomáticas de Soares que a época era propícia a esses exercícios de tentar fazer as tais pontes, porque em 1993, dois anos antes do trágico momento, Arafat, enquanto líder da OLP, tinha negociado com o primeiro-ministro israelita os tais Acordos de Oslo, criadores da Autoridade Palestiniana e de uma vaga de otimismo em relação a uma solução para o conflito israelo-palestiniano. O mérito foi dos dois falcões por terem aceitado a ideia de paz, também da diplomacia norueguesa, excelente na construção da ponte entre israelitas e palestinianos, e, claro, da pressão de Bill Clinton, presidente americano.

Os Acordos de Oslo deixaram demasiado em aberto e hoje são muito criticados. Mas foram, de facto, um marco. A OLP aceitava a existência de Israel, e Israel, aceitando a criação da Autoridade Palestiniana, comprometia-se com a solução de dois Estados. E é essa mesma solução de dois Estados que hoje continua em cima da mesa, mesmo que do massacre de mais de mil israelitas no 7 de Outubro à expansão dos colonatos na Cisjordânia, da insistência do Hamas em manter reféns vivos e mortos à destruição das cidades de Gaza, tudo alimente uma desconfiança extrema - e muito ódio e ressentimento - de um lado e do outro.

A solução dos dois Estados vem do início. Foi a proposta das Nações Unidas. Foi rejeitada pelos países árabes e inviabilizada depois pela Guerra Fria. Também foi negligenciada por um Israel vencedor de várias guerras e depois de 1967 ocupante da Cisjordânia e de Gaza. Foi recusada pela OLP até 1988, quando finalmente Arafat entendeu que Israel era um facto , e continua até hoje a ser recusada pelo Hamas, que com o ataque terrorista do 7 de Outubro de 2023 recolocou a questão palestiniana na agenda (remetida ao esquecimento, era um dano colateral dos Acordos de Abraão promovidos por Trump no primeiro mandato), mas conseguiu abrir ainda mais o fosso entre israelitas e palestinianos, pois atacou gente do chamado campo da paz, como os do kibutz Nir Oz, e conseguiu atrair a fúria de Israel sobre Gaza, com os seus dois milhões de habitantes, 60 mil dos quais terão morrido nestes quase dois anos de guerra. E não faltam entre os que rodeiam o primeiro-ministro Benjamim Netanyahu quem pense alargar as fronteiras de Israel, pouco importando o sofrimento em Gaza.

O simbolismo do reconhecimento do Estado Palestiniano, embora sem se saber território, população ou qual poder político, tem sido a resposta de vários países à falta de perspectiva de paz em Gaza, e à pressão de uma opinião pública que se indigna com o que vê na televisão. Israel bem poder argumentar contra a máquina de propaganda do Hamas, mas os relatos de fome que vão chegando de funcionários internacionais, além das denuncias de setores da própria sociedade israelita, reforçam a convicção de tratar-se um golias contra um david junto de muita gente que há muito escolheu o lado palestiniano, sobretudo na Europa.

Não será em Nova Iorque em setembro que a paz final entre israelitas e palestinianos será obtida. Mas seria importante o mundo, seja o Ocidente sejam os países árabes, envolver-se de uma forma menos cínica do que no passado. Para haver dois Estados e em paz, é preciso desesperadamente que as populações de um lado e do outro ponham de lado as suas franjas mais extremistas, ultrapassem as fortíssimas divisões internas, e que em paralelo o mundo esteja preparado para tudo fazer para dar dignidade aos palestinianos e garantias de segurança aos israelitas. É fácil? Acontecerá a breve prazo? Há uma solução para pôr fim ao ciclo de ódio? Que cada um dê a sua resposta. Mas que a mortandade que grassa naquele recanto do mundo tem de parar, é uma questão de humanidade. É preciso voltar a dar esperança.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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