“Vai para a tua terra”

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O tom exaltado das vozes contrastava com a habitual pacatez que se sente naquela praia fluvial alentejana. Desviei o olhar na direção do ruído e percebi que se travava uma discussão, na esplanada do café de praia. Segundos depois, um homem agrediu outro com um murro no rosto, deixando-o sem reação à frente das duas mulheres que o acompanhavam, a esposa e uma amiga portuguesa do casal, imigrantes brasileiros. Como uma mola, saltei do sítio onde estava e corri até lá. Nunca gostei de violência, principalmente quando o agredido está em clara desvantagem, como era o caso, pois o imigrante estava cercado por quatro homens – é essa a razão que encontro para a minha reação impulsiva.

Furei entre as pessoas que assistiam a tudo impavidamente e fiquei no meio da briga. Tentei primeiro afastar o agredido, pedindo-lhe também que guardasse o telemóvel e as chaves do carro que, entretanto, estavam esquecidas sobre a mesa. Mas o verdadeiro perigo vinha do agressor e foi nele que foquei atenção. No tom mais suave que consegui, pedi-lhe para ter calma e, em resposta, confrontou-me com duas perguntas: “Você sabe o que se passou? Sabe o que é uma falta de respeito?” Enquanto o tentava bloquear, disse-lhe não estar interessado no motivo da discussão e que sei muito bem o que é faltar ao respeito a alguém, mas lembrei-o que a violência não resolve nada e que quem agride perde sempre a razão.

Os ânimos continuavam muito exaltados e, nesta altura, já alguém chamara a GNR. A amiga do casal, com os olhos rasos de lágrimas, usava palavras como “injustiça” e “vergonha”, enquanto um dos quatro homens envolvidos na discussão, sentado à mesa, ia repetindo a frase: “Vai mas é para a tua terra”. Os óculos escuros que usava e o sorrido sarcástico que tinha no rosto em nada camuflavam a mensagem de ódio que vociferava. O que diria este homem se, porventura, tivesse filhos emigrantes a ser sujeitos a este tipo de discurso?

A mulher do agredido era, agora, a pessoa mais tensa. Chorava e gritava: “estou revoltada”. Num momento de descontrolo emocional, tentou aproximar-se do homem que a ofendia repetidamente com as suas palavras xenófobas. Foi precisa a força de oito braços para a segurar. Nesta altura, o primeiro agressor, talvez arrependido ou, então, consciente que a polícia estava a caminho, aproximou-se do casal e pediu calma. A mulher exigiu-lhe que apresentasse desculpas ao marido e assim aconteceu, o que ajudou a acalmar a situação.

Voltei para junto da minha família e preparámo-nos para deixar a praia. À saída, passei de novo pela mesa onde estava o casal e lamentei o que lhes tinha acontecido. Na mesa em frente, uma mulher que acompanhava os agressores olhou-me nos olhos e disse apenas: “A vida são dois dias”. Não percebi sequer o que queria dizer com isso e, simplesmente, ignorei. Despedi-me do casal e quando me dirigia para o carro vi chegar três elementos da GNR. Não estiveram no local mais do que cinco minutos, o que me fez pensar que não foi apresentada queixa, talvez por receio de represálias. Quantos imigrantes não farão o mesmo, engolindo em seco este tipo de comportamentos para não arranjarem mais problemas?

Inicio a viagem de regresso a casa ainda perturbado com o que presenciei. Uma coisa é ler ou ver vídeos com este tipo de mensagens, outra bem diferente é assistir, ao vivo e cores, ao à vontade e indiferença pelo outro com que se manifestam alguns portugueses antiimigração.

Absorto nesse pensamento, sigo por uma estrada regional a uma velocidade abaixo do que é hábito. O que acabou por ser decisivo, dando-me tempo para travar e reagir, evitando um acidente de consequências difíceis de prever, quando um imponente veado, surgido do nada, cruzou a estrada a poucos metros do meu carro. Lembrei-me imediatamente da frase que escutara minutos antes e que não entendera: “A vida são dois dias”. A senhora tinha toda a razão, é mesmo assim. Num ápice, tudo pode mudar. E cada segundo que passamos a odiar o outro e a incitar mais pessoas a fazê-lo não só são um desperdício como são também uma verdadeira estupidez.

Editor Executivo do Diário de Notícias

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