Uma promessa de justiça

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Na passada semana, acabei o texto a escrever: “Não basta dizer que é preciso “reinventar a democracia” - e continuar como se fez nas últimas décadas”.

Sabemos que temos uma degradação de uma solidariedade quase histórica, mas que foi única no tempo; a normalização, quando não a valorização, de um discurso público egoísta e autocentrado, como doutrina e como prática; a banalização da falta de pudor e a descrença crescente em qualquer virtude que possa ser criada pelo poder. Vemos também a simplificação de quaisquer mensagens partilháveis; a anulação do tempo e da aceitação da complexidade; a vontade de velocidade enquanto valor e não circunstância; o enaltecimento de uma atitude de selva e de autodefesa permanente, perante quase tudo e quase todos. Neste contexto, a vida política só poderá ser o que é hoje.

Quando se fala da necessidade de reinventar a democracia, o que podemos fazer para inverter o ciclo? Ou será impossível?

O discurso de resistência a este processo tem sido construído com base em conceitos como a recuperação da justiça social, o aprofundamento da participação política, o aumento da transparência na decisão pública, o reforço da educação cívica e sobre valores democráticos. Mais recentemente, o combate à desinformação e a supervisão sobre ferramentas tecnológicas associaram-se como temas. Todas estas dimensões são boas e podem ser concretizadas em diferentes ações. Mas todas elas exigem vontade e disponibilidade por parte dos cidadãos. Nunca como hoje terá havido tanta informação e transparência quanto às decisões do poder e o que é certo é que grande parte das pessoas se sente afastada dessa informação e acreditará sempre convictamente que o segredo e as corrupções são o essencial no exercício desse poder.

Sabemos que a presença de imigrantes económicos e refugiados no espaço europeu, em grande número, mesmo que não associada a problemas específicos de criminalidade ou insegurança, cria imediatamente em muitos uma necessidade quase instintiva de defesa perante essa estranheza. Mesmo esquecendo, convenientemente, que Portugal continua a ter muito mais emigrantes fora de Portugal do que imigrantes no território nacional. E que a emigração de portugueses para outros países é também explicação para os números recentes elevados de entradas em Portugal, sob pena de vários setores da economia – agricultura, pescas, turismo e hotelaria, restauração, construção civil, etc. – não conseguirem funcionar.

Provavelmente a explicação mais funda para este ressentimento coletivo contra o poder e contra a diferença, ou seja, contra algum tipo de sucesso percebido num outro, seja ele real ou não, está nas desigualdades e injustiças que não se conseguiram esbater o suficiente e que continuam a marcar uma fronteira entre os que têm e os que não têm, resultando numa vida coletiva dual, com estranhezas de parte a parte, mesmo que se partilhe o mesmo espaço, se usem as mesmas ferramentas tecnológicas, se vá até à mesma escola. Isto não afasta também a responsabilidade pessoal no processo. É possível que pessoas pobres e trabalhadoras sejam igualmente adeptas do facilitismo, do curto prazo, sejam cobardes, assumam invejas e vaidades circunscritas. Especialmente quando os estímulos parecem induzi-lo. É por isso que o discurso populista da extrema-direita é capaz de aliciar muitas pessoas: sentindo-se injustiçadas na sua desigualdade, que a publicidade e o mercado desde logo mostram como evidente, optam por escolher a voz que não quer reduzir as desigualdades, mas repor apenas uma espécie de justiça mais simples e mais rápida, uma vindicta contra o outro e contra essa alteridade. E a verdade, perante promessas de justiça, é sempre um pormenor.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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