Uma lei em alto mar

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Durante décadas, o alto mar tem sido descrito como um faroeste global. Um território vasto, sem xerife, onde navios de bandeiras diferentes pescam sem limites, exploram recursos sem controlo e despejam poluentes sem grande escrutínio. Ora, na última sexta-feira, a comunidade internacional acendeu uma faísca de lei e ordem nesse espaço que cobre mais de dois terços do oceano e quase metade da superfície da Terra, quando Marrocos se tornou oficialmente o 60º país a ratificar o Tratado do Alto Mar - ativando assim a condição mínima para a sua entrada em vigor. Portugal já ratificara o tratado em maio passado.

Após mais de duas décadas de negociação, assinala-se o marco histórico na proteção global dos oceanos. Pela primeira vez existe um quadro jurídico para proteger a biodiversidade em águas internacionais, que não pertencem a nenhum país, mas pertencem, em rigor, a todos nós – o alto mar começa onde terminam as zonas económicas exclusivas de cada Estado.

A sua importância é fácil de explicar: o oceano regula o clima, absorve carbono, gera oxigénio e garante alimento e rendimento a milhões de pessoas. Sem uma proteção séria face a ameaças como a sobrepesca, aquecimento, poluição, projetos de geoengenharia ou mineração (embora esta supervisionada por outra entidade, a ISA), podemos muito bem ver o mar transformar-se numa espécie de “deserto líquido”.

O tratado promove a criação de Áreas Marinhas Protegidas em alto mar e reconhece esta vasta superfície como um bem comum da humanidade, a ser gerido com justiça e rigor científico. Introduz normas comuns para avaliações de impacto ambiental, evitando que cada país faça as suas próprias regras de conveniência. E ainda prevê mecanismos de partilha de benefícios dos recursos genéticos marinhos, procurando maior justiça entre países ricos e pobres. Tudo isto alinhado com a meta global de proteger 30% da terra e do mar até 2030.

Mas convém não criar ilusões. Este é apenas um ponto de partida. Sem uma adesão ampla, levantam-se limitações sérias para o real sucesso do tratado, com o risco de uns cumprirem as regras enquanto outros continuam a explorar livremente. E é aqui que entra o maior fator de resistência. As grandes potências marítimas, como Estados Unidos, China, Rússia ou Japão, ainda não ratificaram o acordo. E não se perspetiva que o façam num horizonte próximo – Rússia e Japão nem sequer o assinaram; e os EUA assinaram-no na presidência Biden, o que, como sabemos, pouco ou nada valerá para Trump.

São estes os “cowboys” mais influentes do faroeste oceânico. Nesta era em que também nos mares se jogam rivalidades comerciais e militares que minam a cooperação multilateral entre potências, alguém conseguirá convencer Trump, Xi ou Putin a jogar sob as mesmas regras? Muito provavelmente, não. Para já, o tratado transmite pelo menos um sinal de esperança, uma porta aberta a que mais adultos entrem na sala.

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