Um postal de Natal

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Que dizer na véspera do Natal? Que, por muito que estejamos abertos e disponíveis para a festa em que tentamos inundar de luz a escuridão da noite e de fogo o coração do frio, nem por isso deixa de cercar-nos uma difusa e extrema melancolia, luto pelos que já não estão ou luto por tudo aquilo que já fomos. Dizemos então que o Natal é uma festa de crianças e desse modo deixamo-nos vencer pela bílis negra da acédia e falece-nos a energia que devemos pôr a defender a vida e o que é vivo.

Permitam-me então que reproduza nesta crónica um poema meu, consciente de que apenas estou a plagiar-me a mim próprio.

Poema de Natal

E se eu tiver toda a fé, até ao ponto de transportar montanhas, e não tiver caridade, não sou nada

(São Paulo)

Quem encontraste hoje que te oferecesse

o puro leite da ternura humana

e não o mel da lisonja ou a indiferença comum?

Muitos dias ficam assim, suspensos num vazio de desamor,

mas nós já nem damos por isso,

temos que marcar lugar na feira, os carrosséis giram sem nós e as crianças apontam-nos com o dedo,

nós que persistimos em montar no cavalinho de pau

e dar mais uma volta

sem razão que valha.

O Natal passa por nós, faltam-nos a alguns os pais a outros os filhos ou os netos.

Esta festa foi inventada para afastar com luzes, muitas luzes,

o escuro do inverno e a ideia da morte.

Para onde foram todos? Para onde foram todos?

Aproxima-te de mim. Não falo de Cristo.

Só me lembrei da consoada e da tua azáfama festiva

que afasta de nós a morte ao inventar alegria,

a pura alegria em que duramos.

São Paulo pergunta-nos pela caridade

e aqui estou eu de pé, envergonhado como uma criança

porque eu não tenho fé, não tenho a fé,

e essa falta não me dói,

mas sei que tenho, que temos, ó irmãos humanos, que responder

por toda a caridade que não tivemos.

(de Outro Ulisses regressa a Casa, Assírio e Alvim, 2016)

Seja este o meu postal de Natal, num mundo em que a caridade e o amor pouco valem face ao dinheiro e à guerra e em que Eros, o instinto de vida, sucumbe passo a passo a Tanatos, o instinto de morte. Que mais mecanismos, que mais estratagemas inventaremos para melhor morrermos de morte matada, como formula João Cabral?

A guerra põe a nu a nossa desumanidade e ajudam-na nessa tarefa os mecanismos virtuais que se pretendem impor às nossas consciências, aniquilar a nossa sensibilidade e distorcer as nossas inteligências, para que mais facilmente aceitemos como natural a crueldade e a violência que desde sempre habitaram em nós, humanos, mas a que fomos contrapondo através da História, ideais de compaixão e de misericórdia, de Cristo ou de Buda, que talvez as máquinas não reconheçam mais.

Feliz Natal!

Diplomata e escritor

Diário de Notícias
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