Um país ao espelho: o exame de português hoje
Quem leia e releia o Exame Nacional de Português (1.ª fase) chegará a algumas conclusões que, em tempo de radicalização do discurso político e de superficialidade no modo como nos aproximamos dos debates sobre os mais diversos temas, não deixarão de legitimar precisamente – do outro lado da barricada – respostas enviesadas, ou mesmo venenosas, ou, quando não, o esgar irónico, ou a propositada incompreensão (uma forma de bloquear toda a argumentação e o debate a fazer-se). A um primeiro olhar este exame parecerá estar de acordo com algo que muito agrada aos que o conceberam: Camões e Pessoa – Os Lusíadas (1572) e Mensagem (1935) – são os eixos desta prova, sendo que a Parte C, dedicada à questão do Herói, até solicitava do estudante uma capacidade de redacção (sem delimitar número de palavras – o que é bom) a partir da comparação entre o texto da parte B (o poema “D. Fernando, Infante de Portugal”) e as oitavas 51-53 do Canto IV de Os Lusíadas. E é neste particular que teremos de pôr a questão: estarão os estudantes de hoje, em 2025, depois de uma escolaridade feita verdadeiramente sem leituras de qualquer livro, quantas vezes com aulas que decorrem na mais absoluta das distracções ou na mais nefanda das anarquias – estarão os nossos alunos preparados para este tipo de trabalho de comparatismo (ainda que simples)?
A questão é sensível, pois que, justamente por ser o tema dos dois textos em presença o Herói – tema que mereceu de Rafael Argullol um dos mais extraordinários ensaios (O Herói e o Único – O Espírito Trágico do Romantismo, Veja, Lx, 2009) – podemos e devemos mesmo perguntar se para o aluno sem leituras ao nível do ensaio e sem leitura ou memória alguma dos textos do chamado cânone escolar o tema do herói não é, como qualquer outro tema, qualquer coisa do domínio do estranho, do obtuso, do incompreensível. É que, quem lecciona neste nível de ensino e na universidade sabe bem que são raríssimos os alunos que leram os trechos da epopeia insertos nos manuais adoptados na disciplina de Português. Quem é professor não ignora que são poucos ou nenhuns os alunos (e até alguns, não raros, docentes) que leram Os Maias (1888), romance onde a questão do herói e do anti-herói é primacial para entendermos quem é Carlos. Já agora, Carlos é, verdadeiramente, um anti-herói e que, na visão crítica de Jacinto do Prado Coelho, falha na vida não por causa, mas apesar da educação. Esta tese, de resto, poderemos nós aplicá-la a quase todo o estudante português: apesar de andarem na escola, falham. Ainda sobre a questão do herói, e porque nas acções de formação que por aí se fazem a didáctica do texto literário é de somenos importância (abundam as formações sobre capacitação digital e mil e uma plataformas a usar para questões de autonomia do aluno e proficiência do docente, mas saber ler e escrever, saber comentar e analisar – isso ‘tá quieto! É raro!), importaria lembrar que a questão do herói é central num dos mestres de Camões: Fernão Lopes. Mas que consciência tem o estudante de ser esse um tema axial da própria literatura? Nenhuma. Quem ouviu falar, ou leu um trecho da tese de Maria Lúcia Perrone de Faro Passos, O Herói na crónica de D. João I, de Fernão Lopes (Prelo, Lx, 1974)? Logo, apesar das boas intenções de quem faz o Exame, este tipo de prova – repito-o ao fim de 24 anos a condenar o abaixamento, de ano para ano, da exigência para com aqueles que vão para o Ensino Superior – este Exame vem mostrar e demonstrar o óbvio: independentemente da “coerência” da prova, não há avaliação, de facto, das competências da escrita e da leitura, porquanto o aluno apenas tem de dominar algumas estratégias de análise metódica do texto lírico ou do texto épico (nas partes A, B e C) para responder às questões colocadas. E, portanto, se ignoram questões teóricas e míticas, se não compreendem os processos de figuração do herói no texto literário, como escrever, com rigor, aquela Parte C deste exame? Deriva daqui – desta ignorância geral em relação a um tema capital da formação das literaturas – outra ordem de problemas: a ausência de redacção escrita neste tipo (esgotadíssimo!!) de Exame de acesso à Universidade.
Nem vale a pena comparar o Exame de Português de 1994, ou de 1997, com os de 2020, ou de 2025. Gradual e engenhosamente, os que concebem os Exame de Português foram fazendo desaparecer questões que implicam a redacção rigorosa e segura em língua portuguesa. No Grupo I, Parte A, a respeito das oitavas de Camões (três!!), há duas perguntas obrigatórias e uma terceira opcional. Esta última questão é um exercício tão estupidamente bacoco (selecionar uma opção adequada para um texto lacunar, avaliando se o aluno sabe identificar o que sejam uma apóstrofe, uma sinestesia e uma anáfora) que recordamos, com alguma saudade, aquela questão clássica de outros tempos: “Comente o efeito expressivo de x [uma figura de retórica] presente no verso y e de que modo esse processo contribui para o entendimento do título/estrofe/ personagem” (eram perguntas que exigiam o comentário, note-se).
Agora – como nos exames de condução, ou à maneira americanóide da moda – o estudante tem ao longo do exame perguntas opcionais. Sublinho, já agora, a pergunta número 6 da Parte B, onde, a respeito do poema de Pessoa, o aluno tinha de escolher três afirmações que pudessem ser comprovadas “através da leitura” desse poema. Trabalho hercúleo, pois: escrever na folha de respostas o número do item escolhido e as três letrinhas correspondentes às opções selecionadas. Que dizer? Haverá, de facto, alguma espécie de preocupação por prepararmos, de forma comprometida com um ideal de aprendizagem da língua nos domínios da escrita e da leitura, os estudantes deste país? Muito terão sido aqueles que, na 2.ª feira, um pouco por todas as escolas portuguesas, ao verem as três estâncias do Canto IV, logo sorriram, ou desistiram, ou ficaram em pânico. É que falta ensino da História e muitos não fazem ideia alguma de quem foram D. Duarte e D. Fernando.
Falta, na formação dos professores – muitos deles de uma geração já refém de um modelo acéfalo de ensino onde tudo é jogo didáctico, facilitação de aprendizagens e absoluta inexistência do texto literário como âncora da aula de Português – uma sólida didáctica da literatura e da língua. O hipérbato, o anacoluto, o quiasmo, saberão os alunos desmontar e compreender estes processos sintácticos na frase camoniana e nas quintilhas de “D. Fernando, Infante de Portugal”. E se não houvesse qualquer nota de rodapé? Compreenderiam os alunos um e outro texto? Já agora, é grave quando se tem de colocar o significado de “Fortuna” em nota de rodapé. George Steiner, em 1999, constatava: “Os meus alunos de Oxford, de Harvard, não sabem já o tema da ‘Canção de Rolando’ e onde é Roncesvales.” E dizia, pesaroso: qualquer dia teremos de ter notas de rodapé em tudo…
Este Exame não é necessariamente pior nem melhor que quaisquer outros que, nos últimos 20 anos se fizeram em Portugal. Mas é o espelho da nossa indigência: o melhor aluno de hoje a Português jamais faria o Exame de 1994, ou de 97, quando se exigia o comentário geral a um poema a partir de tópicos de análise crítica e, no grupo subsequente, a síntese ou o resumo, ou a dissertação. Estou em crer, na verdade, que não haveria ninguém capaz de fazer a Prova Geral de Acesso – essa mesma, a do tempo do Ministro Couto dos Santos! E a questão não é ideológica, sequer. Quando a Gramática da língua de Camões se avalia a reboque de uma bateria de exercícios a partir de um texto (Tolentino Mendonça), o mínimo que posso dizer é que esses exercícios não atestam qualquer competência: o estudante “marrou” a classificação de orações e algumas funções sintácticas e pode até acertar todas as opcionais.
Todavia, esse é o mesmo aluno cuja redacção está pejada de erros de sintaxe e se semântica verbal, é o estudante que, passados 12 anos, tem um universo cultural paupérrimo – e nada leu – nem poesia, nem ensaio, nem algumas páginas dos famigerados manuais – sobre Camões e Pessoa. E que lhe interessa a sociedade ou o indivíduo? Nas esplanadas junto dos liceus venha o próximo exame com perguntas opcionais e quase nenhuma escrita. Em terra de cego…
Professor, poeta e crítico literário
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.