Ucrânia, 1000 dias

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Mil dias de sofrimento e ignomínia. De violação clara do Direito Internacional. De excessiva complacência de várias chancelarias perante “o lado russo”. De incerteza e desumanidade.

A guerra é a guerra. Sempre. Mas a que Vladimir Putin decidiu iniciar, em larga escala, a 24 de fevereiro de 2022, faz agora 1000 dias, impressiona pela total falta de sustentação: é feita de forma não-provocada. Ilegal e imoral. 

Pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, um país europeu - e logo o maior em área - foi invadido por outro: e logo o maior do mundo. O direito de fronteira, conceito-base do Sistema Internacional Onusiano, foi posto em causa assim mesmo, às escâncaras, sob a capa de argumentos entre o descarado e o risível, do estilo “proteger os russófonos de genocídio cultural no Donbass” ou “repor os direitos dos cidadãos da Grande Rússia”.

O revisionismo imperialista de Vladimir Putin, já denunciado em 2008 na Geórgia (Abcásia e Ossétia do Sul), e sobretudo na anexação ilegal da Crimeia (2014, início do conflito russo-ucraniano, entretanto prosseguido no Donbass), teve há 1000 dias o seu “unveil” definitivo: ao querer invadir a Ucrânia toda, a opção maximalista de Putin revelou uma interpretação assustadora - o autocrata do Kremlin alinhou nas vias de Alexander Dugin de que a Ucrânia “não tem razão de existir”, porque seria apenas a ponta ocidental da Grande Rússia - conceito que chega a extravasar as fronteiras existentes até ao final dos Anos 80 do século XX do que eram as 15 Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Sim, os ucranianos continuarão a resistir

Tem a Ucrânia capacidade e dimensão para resistir mais 1000 dias ao invasor russo, sendo o agressor o maior país do mundo e um dos maiores Exércitos do globo? Não sabemos.

O que parece claro é que os ucranianos vão resistir muito mais do que 1000 dias. Porque sabem que não têm alternativa. Porque sabem que a capitulação à Rússia seria muito pior. Porque têm no seu código genético o “Slava Ukraini”, grito que representa a resistência e o orgulho em ser ucraniano, apesar de todos os riscos e de todas os ataques.

O que se passar na Ucrânia não ficará na Ucrânia. Quem ainda não percebeu, que passe a perceber. Porque o futuro da Ucrânia terá mesmo a ver com todos nós.

Um dos subtextos da invasão de Putin é, precisamente, o de impedir que a Ucrânia tome a livre opção de seguir a via da Europa democrática, virando costas ao jugo ditatorial de Moscovo. Mais, até, do que a questão de entrar na NATO, o que Vladimir Putin verdadeiramente teme é mesmo isso: que através de uma Ucrânia membro de pleno direito da UE, a Rússia tenha às suas portas o crescimento da Democracia.

Desde 24 de fevereiro de 2022, pela força bruta, Putin está a tentar impor o imperialismo revisionista e agressivo às portas da NATO, para evitar que o doce sabor da Democracia se aproxime das portas de Moscovo.

Como muito bem escreveu, nas páginas deste jornal, o professor António Rebelo de Sousa, no brilhante artigo, cuja leitura recomendo vivamente (edição DN de 16 de novembro passado) com o título “Entre a Desonra e a Guerra”: “O Pacto que, possivelmente, será assinado em Minsk prevendo a paz na Ucrânia, cedendo à Rússia parte do seu território, impondo-lhe um “estatuto de neutralidade” (que implicaria não pertencer à NATO e à União Europeia) e quiçá a impossibilidade de dispor de Forças Armadas próprias, não é menos do que uma verdadeira rendição do Ocidente à vontade política de Putin. Com consequências desastrosas no futuro. Até porque uma grande parte da Europa não poderá aceitar essa solução.”

É, pois, o futuro da Europa - não apenas o da Ucrânia - que está em jogo há 1000 dias nos campos de batalha ucranianos. Os ucranianos estão a lutar por nós e a nossa obrigação será a de manter condições políticas, eleitorais, sociais e económicas para que o apoio à resistência da Ucrânia se mantenha.

Não menos do que isto.

O que mais se temia

A vitória de Trump era o desfecho que quase todos os que defendem a tese do “as long as it takes” (apoiar a Ucrânia a resistir e a tentar recuperar o que a Rússia ocupou, pelo tempo que for preciso) mais temiam.

A futura Administração norte-americana deverá fazer tudo para surgir como a que conseguiu trazer a solução para a paz - em contraste com a herança Biden de não ter evitado a agressão de Putin e de ter mantido o apoio militar a Kiev.

Depois do claro triunfo eleitoral de 5 de novembro passado, e com as nomeações já conhecidas, o que mais se temia parece estar a confirmar-se: de Washington passaremos a ter agora um grande travão, em vez de termos (como ainda temos com Biden, Blinken e Sullivan) uma direção política com um claro objetivo de proteger a Ucrânia e travar a agressão russa.

A partir de 20 de janeiro, isso deixará de ser um pressuposto claro. Donald Trump tem ligações mais do que suspeitas com Vladimir Putin. Elon Musk, com protagonismo estranhamente excessivo na esfera do presidente-eleito, começou por escolher a Ucrânia, mas virou para proximidade russa, desde o final de 2022.

É certo que o futuro secretário de Estado, o senador republicano da Florida, Marco Rubio, chegou a ser um apoiante da Ucrânia ainda maior do que Joe Biden, no início da invasão, pedindo um financiamento mais robusto para Kiev. Mas nos últimos meses foi-se aproximando da esfera trumpista de forçar Zelensky a um acordo que leve ao congelamento do conflito, focando-se na ideia de que são os países europeus, e não os EUA, os principais interessados em que deixe de haver guerra no flanco leste europeu.

É essa, no geral, a tese de quem vai assumir protagonismo nas áreas de Política Externa, Defesa e Segurança Nacional, na futura Administração: Mike Waltz (futuro Conselheiro de Segurança Nacional), Pete Hegseth (futuro chefe do Pentágono) e, claro, o futuro vice-presidente J.D. Vance, principal promotor de um acordo que passe pela neutralidade da Ucrânia (abdicar de entrar na NATO por um período de 20 anos) e pela delimitação de uma zona desmilitarizada sobre a atual linha de contacto, que na prática entregaria à Federação Russa mais de 20% do território ucraniano.

Biden autoriza armas de longo alcance - Trump manterá?

Nas nove semanas que faltam para expirar o seu mandato presidencial, Joe Biden parece disposto a fazer da defesa da Ucrânia o seu último grande desígnio como presidente dos Estados Unidos.

A autorização concedida (finalmente!) a Kiev para usar armas de longo alcance em solo russo foi um bom exemplo do que ainda pode acontecer. Fica a dúvida sobre se articulou tal medida na longa conversa que manteve com Donald Trump na semana passada - mas o mais provável é que isso não tenha vindo à baila. É duvidoso que o presidente-eleito garantisse total sigilo nos vários dias que entretanto passaram.

A decisão de Biden já em fase de vulnerabilidade política, uma vez que há um presidente-eleito a preparar nova Administração de sinal político oposto, e a sua vice-presidente perdeu a eleição, pode ser alvo de críticas pelo timing escolhido. Porque não o fez antes? Mas há também quem veja esta decisão como um sinal de força de Biden, no sentido de influenciar o seu sucessor em relação àquilo por que possa optar na questão ucraniana, após tomar posse a 20 de janeiro.

Há outra linha de interpretação para esta decisão de Biden, que abre espaço ao uso de mísseis ATACMS em solo russo: um empoderamento dos países europeus, no sentido de avançarem para o mesmo tipo de autorização. Ora, isso já não está dependente do resultado que saiu das eleições americanas de 5 de novembro passado.

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