O Chile nunca mais foi o mesmo depois do golpe de Estado que depôs o Presidente Allende, organizado desde Washington, num dos episódios mais marcantes da história da América Latina, tanto pelo seu impacto interno como pela influência internacional. Uma democracia estável, que tinha resistido aos caudilhismos de outros países sul-americanos, viveu depois sob uma ditadura feroz que ainda hoje deixa marcas de natureza diversa no país, suscetíveis de conduzir a tentações radicais. A relevância desse episódio de 1973 não se relaciona apenas com o resultado das eleições presidenciais chilenas deste domingo, mas sobretudo com as intenções da Administração Trump de retomar intervenções militares em países da América Latina, como a Venezuela, novamente com o objetivo de promover uma mudança de regime. Não tenho especial simpatia pelo Governo de Maduro, mas acho que esse é um problema que lhes cabe a eles resolver e não o seu vizinho do Norte. Além do mais, é importante relembrar que a popularidade de Hugo Chávez, apenas em parte transferida para Maduro, não nasceu do nada. Como um dia me explicou um diplomata latino-americano, a pobreza extrema era imensa e as desigualdades sociais demasiado gritantes nessa altura, sem que alguém externamente se tivesse incomodado com isso. Chávez deu casa a muita gente que nunca tinha sonhado com nada que se parecesse. Quando em, 2021, participei numa Missão de Observação Eleitoral da UE na Venezuela, pude ver alguns dos bairros por ele construídos em Caracas. Ouvi também organizações da sociedade civil venezuelana defenderem a participação nas eleições como forma de manifestar o seu protesto, criticando algumas posições europeias em sentido oposto. Sustentaram, igualmente, que as vítimas das sanções norte-americanas eram eles, em vez da elite próxima do regime. É certo que os meios da oposição nas campanhas eleitorais eram bem diferentes dos do regime e havia muitas pessoas inabilitadas sem justificação. Poderá, igualmente, ter havido fraude na contagem nas últimas eleições presidenciais (não tanto naquelas que observámos, onde os partidos da oposição até tiveram mais votos). Mas quantos regimes não democráticos bem piores que o da Venezuela há por esse mundo fora, sem a ameaça de serem invadidos pelos EUA, a começar pela China, de onde aliás se diz vir o fentanil que entra nos EUA pela fronteira do México? Para além da violação do direito internacional, de reduzir o espaço para negociações multilaterais e correr o risco de não alcançar resultados concretos na transição política, nunca se sabe como vai acabar uma eventual intervenção norte-americana e que marcas vai deixar para o futuro. Já vimos muitas que acabaram mal por esse mundo fora e, por isso, o melhor é mesmo não repetir. A América Latina tem a sua história atribulada, a sua cultura tão rica, a sua gente tão diversa. Merece consideração e respeito, estejamos mais próximos ou mais distantes dos partidos políticos que governam os diferentes países que a compõem. De todo, não pode voltar a ser tratada como uma quinta de Washington, numa versão requentada da “doutrina Monroe”, de má memória. Ex-deputada ao Parlamento Europeu