Trump, a imigração e a falácia da escassez do trabalho
O que têm em comum Kurt Vonnegut, escritor, e François Mitterrand, presidente socialista de França de 1981 a 1995, com Donald Trump? Ambos, a dada altura, acreditaram naquilo a que os economistas chamam a falácia da escassez do trabalho. É a ideia de que existe um volume fixo de trabalho a realizar e que, se alguém ou algo - um grupo de trabalhadores ou alguma máquina - estiver a fazer parte desse trabalho, existem menos postos de trabalho para os demais.
Trump acredita claramente nisso. Como referi numa crónica recente, está na base da sua hostilidade à imigração; bem, isso e a sua convicção de que os imigrantes estão a “envenenar o sangue do nosso país”. Está também na base do seu protecionismo.
Parece, então, ser uma boa altura para falar sobre a falácia da escassez do trabalho, sobre como sabemos que é uma falácia e por que motivo é um zombie: uma ideia que se recusa a morrer e que, em vez disso, continua a arrastar-se, comendo os cérebros das pessoas.
Primeiro, acerca de Vonnegut e Mitterrand.
O primeiro romance de Vonnegut, Player Piano, publicado em 1952, previa um futuro sombrio em que a automação conduz ao desemprego em massa: as máquinas são capazes de fazer tudo, por isso não há necessidade de trabalhadores humanos.
Mitterrand, ao subir ao poder numa nação que tinha registado um grande aumento do desemprego desde o início da década de 1970, reduziu a idade de reforma em França de 65 para 60 anos, em parte porque o próprio e os seus conselheiros acreditavam que encorajar os cidadãos franceses mais velhos a deixarem a vida ativa libertaria postos de trabalho para os trabalhadores mais jovens. Os sucessores de Mitterrand passaram décadas a tentar reparar os danos.
Porque é que há sempre um grupo substancial de pessoas - o lumpencomentariado? - que acredita que o trabalho é limitado e que, por isso, as máquinas que aumentam a produtividade ou os imigrantes que entram no mercado de trabalho roubam empregos? Muitas destas pessoas provavelmente nem sequer refletiram sobre os seus pontos de vista. No entanto, também é verdade que algo como a história da escassez do trabalho faz sentido se pensarmos num único setor isoladamente.
Por exemplo, há muito tempo, um dos meus tios tinha uma fábrica que utilizava a moldagem por injeção de plástico para produzir ornamentos para relvados. Basicamente, fornecia flamingos cor-de-rosa aos subúrbios de Nova Iorque, então em expansão. Uma vez que existia, presumivelmente, uma procura limitada de flamingos cor-de-rosa, as máquinas que permitiam a produção destes flamingos com menos trabalhadores reduziriam o emprego na indústria, ao passo que o aparecimento de novos produtores retiraria postos de trabalho aos atuais trabalhadores dos flamingos cor-de-rosa.
Para dar um exemplo menos excêntrico, há limites para a quantidade de alimentos que as pessoas querem consumir, pelo que o aumento da produtividade na agricultura leva a uma menor necessidade de agricultores. A América tem atualmente o dobro da população do que tinha quando Vonnegut publicou Player Piano, mas emprega apenas cerca de um terço desse número de pessoas na agricultura.
Contudo, embora haja uma procura limitada de flamingos cor-de-rosa ou de trigo, não há provas de que haja uma procura limitada de coisas em geral. Quando os rendimentos aumentam, as pessoas encontram algo em que gastar o seu dinheiro, criando empregos para substituir os trabalhadores deslocados pela tecnologia ou os recém-chegados ao mercado de trabalho. As máquinas executam, de facto, muitas tarefas que antes exigiam pessoas; a produção por trabalhador é mais de quatro vezes superior ao que era quando Vonnegut escrevia, pelo que poderíamos atingir o nível de produção de 1952 com apenas um quarto do número de trabalhadores. Na realidade, o emprego triplicou.
Para que fique claro, não estou a afirmar que o progresso tecnológico nunca pode prejudicar os trabalhadores ou alguns grupos de trabalhadores. A tecnologia que faz desaparecer em grande parte uma ocupação tradicional - por exemplo, a forma como o transporte de mercadorias em contentor eliminou mais ou menos a necessidade de estivadores - pode ser devastadora para os que ficam sem trabalho. E o que se designa por mudança tecnológica enviesada, que reduz a procura de alguns recursos enquanto a aumenta para outros, pode reduzir os rendimentos reais de grandes grupos. Muitos economistas acreditam que as mudanças tecnológicas que dependem das competências, que aumentam a procura de trabalhadores altamente qualificados como fator de produção e diminuem a procura de mão de obra menos qualificada, têm sido um fator de aumento da desigualdade, embora muitos outros, incluindo eu próprio, sejam céticos. É, pelo menos, discutível que a mudança tecnológica, influenciada pelo capital, tenha causado a estagnação dos salários reais durante as fases iniciais da Revolução Industrial.
Porém, o argumento tosco de que o progresso tecnológico causa desemprego em massa porque os trabalhadores já não são necessários está errado.
E a concorrência dos novos trabalhadores? Se estiver preocupado com o facto de os imigrantes tirarem os empregos aos americanos nativos, considere o efeito de um afluxo verdadeiramente enorme ao mercado de trabalho: o movimento maciço de mulheres americanas para o trabalho remunerado, desde meados da década de 1960 até cerca de 2000. As mulheres trabalhadoras tiraram empregos aos homens? Tenho a certeza de que muitos homens pensaram que sim. Mas não o fizeram.
O grande aumento do emprego das mulheres não se fez à custa dos homens. É verdade que se registou um pequeno declínio no emprego masculino ao longo das últimas seis décadas, talvez como reflexo do declínio da indústria transformadora e do surgimento de regiões mais atrasadas no centro do país. No entanto, é evidente que os milhões de mulheres que entraram no mercado de trabalho remunerado não substituíram os trabalhadores masculinos.
O que me leva às preocupações atuais com a imigração. Como referi na crónica recente, Trump e aqueles que o rodeiam acreditam nitidamente que os imigrantes tiram empregos aos americanos nativos. Referi ainda que a totalidade do aumento do emprego desde antes da pandemia de covid-19 envolveu trabalhadores nascidos no estrangeiro. Será que este aumento do emprego dos imigrantes se fez à custa dos trabalhadores nativos?
Ao analisarmos os números, é importante que tenhamos em conta os efeitos do envelhecimento da população, que provocou uma tendência decrescente a longo prazo na participação da população ativa. Por isso, pedi a Arindrajit Dube, da Universidade de Massachusetts Amherst, um dos melhores economistas do trabalho dos Estados Unidos - e alguém que conhece os dados do Bureau of Labor Statistics muito melhor do que eu - que calculasse as taxas de emprego entre os americanos nativos em idade ativa (25-54 anos). Descobriu que era mais provável que estivessem empregados na sua idade ativa do que antes da pandemia.
Embora os imigrantes, enquanto grupo, sejam responsáveis por todo o crescimento recente do emprego, não têm estado a tirar empregos aos nativos.
A propósito, mencionei anteriormente que o protecionismo de Trump está relacionado com o mesmo tipo de pensamento de valor absoluto que prevalece nas suas opiniões sobre a imigração. Trump e as pessoas que o rodeiam, como Peter Navarro, o seu principal conselheiro comercial - atualmente a cumprir pena de prisão por desacato ao Congresso - estão obcecados com os défices comerciais. Se ler o que têm a dizer sobre o assunto, torna-se claro que acreditam que existe uma quantidade fixa de procura no mundo e que qualquer negócio que vá para os estrangeiros é um negócio perdido para a América. É sempre um valor absoluto.
É lógico que não considero que esta prova - ou, aliás, qualquer prova sobre qualquer assunto - vá mudar a opinião de Trump sobre isto ou qualquer outra coisa. Mas algumas pessoas julgam que estão a ser sofisticadas e progressistas quando, na verdade, estão a reproduzir velhas falácias. Não, a IA e a automação, apesar de todas as mudanças que possam trazer, não vão acabar com os empregos, nem os imigrantes. Não se juntem ao lumpencomentariado.
Este artigo foi publicado originalmente em The New York Times
c.2024 The New York Times Company
Paul Krugman é colunista do New York Times, professor da Universidade da Cidade de Nova Iorque e Prémio Nobel da Economia.