Trabalho XXI – um número: 230 mil

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O governo apresentou um conjunto de alterações ao Código do Trabalho a que chamou Trabalho XXI e que qualificou como uma "profunda, ambiciosa e modernizadora reforma do mercado laboral e da legislação laboral", nas palavras sempre laudatórias do Ministro da propaganda. 

Escasseiam pontos essenciais: qual a situação atual e tendências, quais os objetivos de longo e médio prazo, quais os instrumentos (legislativos e outros) e quais os resultados esperados. 

Sabemos apenas que a grande realidade que anima os reformadores é a mesma de há um quarto de século: a dita rigidez da legislação laboral. Pouco importa o que mudou e ainda menos se a leitura mecânica da legislação é representativa da flexibilidade de facto de um mercado que está no ponto mais alto em matéria de emprego (5,2 milhões) e possui uma rotatividade elevada. 

O quadro de dificuldades e ameaças é hoje diferente de outras mudanças legislativas: 

  • Elevados níveis de emprego e escassez de mão de obra qualificada e indiferenciada; 

  • A dimensão média das empresas está estagnada, ameaçando a competitividade; 

  • Apesar do extraordinário desenvolvimento da escolarização, tal ainda não se traduz em produtividade; 

  • A especialização em setores dinâmicos e de maior valor é ainda insuficiente; 

  • A cultura de negociação e partilha de riscos e proveitos é frágil; 

  • A qualidade da gestão e planeamento estratégicos é baixa; 

  • O trabalho por conta de outrem (TPCO) é dominante e crescente, de algumas formas terem crescido em dimensão e visibilidade (plataformas digitais).  

Ouvindo e lendo alguns comentadores de analistas e agentes económicos e políticos é fácil acreditar que as enormes mudanças que estamos a viver estão a destruir as “velhas” relações laborais. Mas, cuidado com as perceções induzidas.  

Entre 2014 e 2024, segundo o Eurostat, só o emprego subordinado cresceu — 18,8 milhões na UE e 650 mil em Portugal. O trabalho independente recuou e a regulação do velho TPCO continua a ser determinante. É preciso lembrar aos arautos do futuro com receitas do passado que em Portugal, hoje, o trabalho subordinado representa 85% do emprego total.  

A resposta a estes desafios, necessariamente diferenciada, remete para a forma de enfrentar o maior embate que as empresas, o emprego e os serviços públicos estão e vão viver: o duplo desafio das transições energética e ambiental e da revolução digital e da Inteligência Artificial. Parece indiscutível que são os confrontos com a dupla transição que marcarão decisivamente o nosso futuro coletivo. 

É preocupante que a primeira intervenção de relevo do governo da AD nas políticas para o trabalho se tenha centrado no revanchismo da tertúlia dos professores de Direito conservadores e num desequilíbrio nas relações no mercado de trabalho completamente injustificado. 

Com a derrota parlamentar da esquerda e o crescimento das diferentes direitas era de esperar que as propostas da AD fossem alinhadas com as perspetivas dos empregadores. Assim foi. 

O que é, apesar de tudo, surpreendente é que a proposta em discussão na Concertação Social tenha uma inclinação única e, mais do que isso, pouco ou nada traga de novo relativamente ao reforço da capacidade para vencer as batalhas de hoje e amanhã.  

A generalidade das propostas consiste em infundamentados regressos ao passado, que enunciam uma clara opção de retrocesso social na precariedade, nas plataformas, na negociação coletiva:  

 - A AD convive bem com a precariedade que dificulta a vida dos jovens e propõe liberalizar contratos a prazo; 

- A AD facilita as “plataformas digitais”, que mascaram relações de trabalho e por isso são abolidos critérios que combatem essa nova forma de falso trabalho independente; 

- A AD não gosta da negociação coletiva e do compromisso social e aposta na individualização das relações de trabalho, regressando a 2003 com a caducidade sem travão e a organização “acordada” do tempo de trabalho entre empregador e trabalhador. 

O moderado entusiasmo que esta iniciativa gerou ficou-se pelo agradecimento dos empregadores e pelas vozes de insuficiência liberalizadora vinda dos fanáticos da “mão invisível”.  

Recordando os últimos 15 anos, podemos confirmar que a taxa de desemprego quase triplicou durante a crise financeira e das dívidas. Desde o ponto mais baixo do emprego — no período da Troika e de Passos Coelho — foram criados cerca de 1 milhão de postos de trabalho. “Apesar” das mudanças na legislação laboral e do substancial aumento do salário mínimo, dirá a direita. Ajudados por essas mudanças, dirá quem se baseie nos factos. 

O governo anuncia agora a disponibilidade para recuar aqui e ali. Mas nenhum recuo terá significado se não envolver uma revisão da abordagem a aspetos centrais desta iniciativa. 

Um exemplo? O regresso ao passado nos contratos a prazo. 
Desde o início do século, os contratos a termo certo representaram 17% a 19% do emprego subordinado, independentemente do ciclo económico. Esta realidade dificultou a transição dos jovens para a vida ativa, mantendo muitos em situações prolongadas de instabilidade e precariedade. 

O acordo de Concertação Social de 2019 inverteu essa tendência: reduziu a duração máxima dos contratos de 3 para 2 anos e tornou as condições mais exigentes. Talvez por isso, o peso destes contratos caiu de 17,9% em 2019 para 12,7% em 2025, aproximando-se da média europeia. Nesse período, o emprego aumentou em 330 mil pessoas, enquanto os contratos a termo diminuíram em 167 mil. 

Este é um número que conta. Se a alteração proposta for aprovada, é provável que, em três anos, regressemos aos níveis do passado. 

Se hoje o peso dos contratos a prazo fosse o mesmo, haveria mais 230 mil trabalhadores nessa condição, na maioria jovens. 

Podemos esgrimir opiniões diversas sobre o mercado de trabalho, influenciados por distintas ideologias (sim, lá estão elas), mas não podemos fugir a este número: os mais 230 mil contratados evitados e que a AD ameaça fazer regressar. 

Economista e antigo ministro do Trabalho  

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