Por muito que se lamente, por mais que se ache despropositado, o arranjo de Segurança que há mais de sete décadas servia a Europa acabou de ser dinamitado e deixou de ter existência credível.Quem o dinamitou foi o autoritarismo arrogante, ignorante e irresponsável que se apossou dos Estados Unidos da América.Com ele foram também a enterrar o vínculo transatlântico, com tudo o que ele continha: comunalidade civilizacional, identidade política em torno de princípios como a democracia representativa, o Estado de Direito, o primado da Lei, designadamente do Direito Internacional, o respeito pelos Direitos Humanos e pelo Direito Humanitário.E, ainda que se percebam e até se possam louvar os esforços para tal disfarçar, faleceu também a NATO. O seu cimento político e estratégico deixou de existir. Mesmo que se possa esboçar a sobrevivência da sua burocracia. O que será irrelevante.Está quebrado o vínculo essencial da confiança mútua, perdeu-se o respeito entre povos e nações, foram traídas as amizades, as proximidades históricas e muitos anos de esforçados, partilhados e duros compromissos a favor da Paz no Mundo. Em nome dos quais muitas vidas foram sacrificadas.Não há hoje na Europa, nem mesmo entre os mais crentes e otimistas, quem tenha a menor dúvida quanto à inexistência de valor efetivo no que respeita ao artigo 5.º do Tratado de Washington.Os EUA deixaram, de facto, de ser aliados das nações europeias. Morreu a ideia de Ocidente que isso consubstanciava. Mas não morreu a Europa, nem a leitura humanista que responsavelmente fazemos do Mundo. E também não morreu o Canadá.Simbolicamente manda o cerimonial militar que ao toque de finados se siga o toque de alvorada. Para que bem se marque que, juntos, estamos erguidos e que a vida continua. Tem de continuar. Que nisso consiste o nosso dever.É esse o toque que tem de ser ouvido na Europa. Em toda a Europa. Com todas as Nações e povos. Naturalmente com a Ucrânia, que há três anos se bate contra o intolerável, em nome dos valores que são também os nossos.Para bem o tocar e ouvir é preciso que a pauta desse toque de alvorada esteja bem escrita.Que nos seus primeiros andamentos se marque que não há ilusões quanto aos EUA do presente. Que neles também conste a clara identificação da Rússia de Putin como um ente ameaçador, agressivo e inimigo dos nossos princípios e critérios de vida coletiva. Que num andamento seguinte se exorcizem os demónios internos que, infelizmente, poluem e ameaçam as nossas sociedades, designadamente sob a forma de demagógicos autoritarismos falsamente nacionalistas.E depois, nos decisivos andamentos seguintes, que se vinque um compromisso coletivo. Para responder à letra a quem nos ameaça e nos quer sujeitar à sua vontade absurda. Para fortalecermos a nossa unidade e coesão. Para construirmos o nosso lugar no Mundo na base dos valores e princípios morais, filosóficos e políticos em que a Europa se revê. E também no respeito pelos outros.Vai ser precisa muita vontade política, muita determinação e lideranças que realmente o sejam.A Europa não está forte em nenhum desses parâmetros. Mas tem tudo para que possa estar forte na inequívoca identificação da sua necessidade e na sua capacidade própria para acordar e reagir.E nessa pauta, pode mesmo haver um sincero post scriptum para fazer saber que com gosto estaremos disponíveis para ajudar o povo norte americano a retomar um caminho de responsabilidade pela concórdia e pela Paz, quando entender e puder libertar-se do seu deplorável presente.General do Exército aposentadoEx-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas