Um dos sintomas mais nítidos, e também mais perturbantes, do esvaziamento do pensamento crítico sobre as artes é a compulsiva codificação social das “mensagens” das obras. Entenda-se: para o cineasta mais medíocre, o escritor menos inventivo ou o criador de instalações de coisa nenhuma, basta aparecer na chamada comunicação social (sobretudo nos pequenos ecrãs) a proclamar que o seu trabalho é sobre uma questão urgente — abusos sexuais, corrupção das elites, alarme climatérico, etc. — para que seja consagrado como um guru com pés de barro. Aliás, a urgência de tais questões acaba mesmo reduzida a fórmulas de moralismo pueril que, apesar disso (ou por causa disso mesmo), têm garantida alguma glória televisiva, desse modo anulando qualquer possibilidade de reflexão genuinamente crítica. Tal conjuntura gera um paradoxo que a mais mecânica comunicação “social” gosta de alimentar. Dito de outro modo: quando algum objeto artístico nasce da seriedade e do risco de enfrentar um assunto realmente complexo, então é quase certo que a sua diferença (narrativa) não consegue suscitar qualquer tipo de atenção ou interesse. Exemplo recente é o silêncio quase geral que acompanhou a difusão de Isto Vai Doer (título original: This Is Going to Hurt), notável série britânica de sete episódios, produzida em 2022 com chancela da BBC, recentemente exibida na RTP2 (ainda disponível na plataforma RTP Play). .Poderia até esperar-se que a forma como Isto Vai Doer identifica problemas muito sérios (a ação passa-se em 2006) no funcionamento do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido comovesse as almas voluntaristas, avançando com a sugestão de que é “tal e qual” como cá... Afinal de contas, a pretexto da actividade de Adam Kay (Ben Whishaw), obstetra e ginecologista num hospital de Londres, a série aponta, com gélida contundência, os dramas resultantes de má organização das urgências, degradação das instalações, sobrecarga de trabalho de médicos e enfermeiros, etc. Enfim, importa relembrar o óbvio, quanto mais não seja em defesa do trabalho específico de qualquer reflexão crítica. O que faz de Isto Vai Doer uma pequena maravilha de televisão & emoção não é a lista dos seus “temas”, muito menos o seu eventual paralelismo com outros contextos. Acontece que tais “temas” não são um fim em si mesmo, já que o verdadeiro material da série é a pluralidade fascinante, por vezes surreal, do fator humano. O nome Adam Kay é verdadeiro. A série baseia-se no seu livro homónimo, disponível no mercado português com o subtítulo “Diário Secreto de um Médico” (ed. Cultura Editora), uma memória dos seus tempos como médico, profissão que abandonou para se tornar... argumentista e ator! O hospital que ele retrata é um verdadeiro teatro existencial: os bebés que vão nascendo são acolhidos por um mundo em que as alegrias da vida que se renova estão sempre enredadas com a crueldade que a sobrevivência pode envolver. Tão importante como o protagonista é, por isso, a figura admirável da médica estagiária Shruti Acharya (Ambika Mod) que, no plano dramatúrgico, servirá de filtro cristalino dessa proximidade radical entre vida e morte. Tudo isto decorre de uma verdade à flor da pele cujas raízes se encontram na tradição realista do cinema britânico, tradição que integra autores tão diferenciados como Ken Loach, Mike Leigh ou Steve McQueen. Sem esquecer que Isto Vai Doer aplica um humor radical, por vezes de sarcasmo muito cru, como há muito não víamos. De tal modo que, por uma vez, a homossexualidade do protagonista nunca é reduzida a uma “bandeira” do que quer seja, antes surgindo como componente vital da sua verdade mais íntima — também isto se tornou raro e narrativamente precioso. Jornalista