Tecnologia, Mar e Defesa. Meios e infraestruturas militares como alavanca da transformação económica nacional

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A Europa vive um momento decisivo no cruzamento entre defesa, economia e inovação. O contexto geopolítico e as novas prioridades estratégicas da União Europeia colocam a Defesa no centro da agenda tecnológica e económica.

Com a chegada do NRP D. João II, navio multifuncional e laboratório flutuante, impõe-se refletir sobre como valorizar os meios e infraestruturas militares para impulsionar a inovação, o desenvolvimento económico e a soberania tecnológica nacional, reforçando a sua autonomia estratégica e inserindo o país nas cadeias de valor europeias.

Durante décadas, a despesa militar foi vista como um custo de segurança. Hoje, entende-se que os meios e infraestruturas militares são plataformas tecnológicas ao serviço da economia e da competitividade, como demonstram países que articulam Defesa, Academia e indústria , transformando-a num motor de progresso.

A Lei de Martec (1) revela o desfasamento entre a evolução tecnológica e a capacidade organizacional para a absorver. Na Defesa, este fenómeno tende a criar um gap cada vez mais crítico entre o surgimento de novas capacidades – como a Inteligência Artificial (IA) ou os sistemas autónomos – e a sua integração institucional. Reduzi-lo exige infraestruturas e mecanismos que liguem a experimentação tecnológica à decisão e aquisição, tornando os meios militares plataformas de teste e cocriação que aceleram a aplicação operacional da inovação.

Em Portugal, o potencial é evidente. O NRP D. João II será um ecossistema de experimentação tecnológica e uma ponte entre as Forças Armadas, a investigação e a Base Tecnológica e Industrial de Defesa (BTID), onde sensores, comunicações, veículos autónomos e IA serão testados e validados.

Para concretizar este potencial, elencam-se de seguida alguns contributos para que o país consiga estruturar uma abordagem nacional, segundo seis eixos de atuação:

1. Institucionalizar Programas de Inovação de utilização dual

Criar linhas de financiamento específicas para projetos de utilização dual, promovendo consórcios entre Defesa, ciência e indústria para acelerar a maturação de tecnologias críticas e com potencial de exportação. Nos projetos apoiados pela União Europeia, cofinanciar as iniciativas com interesse declarado para e pela Defesa, sobretudo quando lideradas pela indústria nacional.

2. Valorizar os meios militares como plataformas de experimentação

Permitir, de forma protocolada e segura, a experimentação tecnológica em meios militares – navios, aeronaves e viaturas – transformando-os em bancos de ensaio operacionais acessíveis a startups, centros de I&D e empresas em desenvolvimento tecnológico.

3. Integrar a Defesa na Estratégia Nacional de Especialização Inteligente

Reconhecer infraestruturas militares - como bases navais, campos militares ou bases aéreas, e zonas de teste e de experimentação, como o Centro de Experimentação Operacional da Marinha (CEOM), o Centro de Experimentação e Modernização Tecnológica do Exército e a Zona Livre Tecnológica Infante D. Henrique (ZLT) - como ativos regionais de inovação, integrando-as nos planos de desenvolvimento regional de especialização inteligente, e promovendo novas cadeias de valor e a fixação em Portugal de indústrias tecnológicas de ponta.

4. Reavaliar a governação da inovação e da transferência tecnológica na Defesa

Tornar a BTID mais dinâmica e colaborativa, face ao ritmo acelerado da inovação global, ligando o ecossistema nacional de aceleradores tecnológicos à experimentação e validação militar. Para assegurar coerência estratégica e coordenação interinstitucional, julga-se adequado estudar a possibilidade e os eventuais benefícios de constituir uma Unidade de Coordenação da Inovação da Defesa (UCID), sediada no Ministério da Defesa Nacional (MDN), que alinhe políticas, programas e infraestruturas de inovação entre a idD Portugal Defence, as Direções do MDN e as Forças Armadas, promovendo não só a transferência tecnológica, o uso dual, a proteção e valorização da propriedade intelectual da Defesa, como a articulação interministerial.

5. Promover plataformas regulares de cocriação tecnológica

Fomentar eventos como o REPMUS (2), que devem tornar-se modelos de plataformas contínuas de diálogo e cocriação entre a Defesa, a Academia e a Indústria. Destas iniciativas resultam desafios concretos e temáticos para desenvolvimento colaborativo com a Defesa.

6. Equacionar a adaptação dos instrumentos jurídicos e contratuais

Adaptar os mecanismos de contratação e aquisição pública para (sem prejuízo da transparência e do necessário escrutínio público) permitir ciclos de inovação ágeis, apoiando a BTID nacional com contratos que promovam prototipagem, partilha de riscos e desenvolvimento faseado de tecnologias.

Um modelo de Defesa ágil e tecnologicamente competitivo permitirá reduzir o diferencial identificado pela Lei de Martec e reforçar o papel de Portugal na Europa.

Transformar os meios militares em motores de inovação e crescimento exige visão estratégica, continuidade política e cultura de colaboração intersectorial. A Marinha Portuguesa tem dado passos decisivos com projetos como o REPMUS, o CEOM e agora com o NRP D. João II. Falta agora avaliar e transformar esses exemplos em política pública estruturada, com escala e impacto.

A economia de defesa não é custo, é investimento em soberania, industrialização, talento e conhecimento. Navios, aeronaves e viaturas militares são infraestruturas de progresso tecnológico e económico, fazendo da Defesa alavanca da autonomia estratégica nacional.

Neste novo paradigma, os meios e infraestruturas militares deixam de ser apenas consumidores de recursos e tornam-se catalisadores de competitividade, conhecimento e coesão nacional, promovendo a Defesa como alavanca da autonomia estratégica e da transformação económica nacional. Para concretizar essa visão, Portugal não deve apenas consumir tecnologia de defesa – deve produzi-la, exportá-la e transformá-la em soberania.

(1) A tecnologia evolui exponencialmente, enquanto as organizações mudam de forma muito mais lenta. Com o tempo, a diferença entre estas duas curvas aumenta, criando uma lacuna estratégica entre o que a tecnologia permite fazer e o que a organização é capaz de fazer.

(2) Robotic Experimentation and Prototyping with Maritime Unmanned Systems, evento internacional de experimentação e desenvolvimento tecnológico, promovido pela Marinha Portuguesa, recorrendo ao espaço físico em Troia do CEOM e da ZLT.

Comandante, Chefe da Divisão de Inovação do Estado-Maior da Armada

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