Silenciadas e invisíveis: as mulheres afegãs sob o regime talibã
"Tornaram-me invisível, encoberta e inexistente.
Uma sombra, sem vida, silenciada e cega. Privada
de liberdade, confinada à minha gaiola.”
Zieba Shorish-Shamley
O Acordo de Doha, celebrado entre os Estados Unidos e os talibãs, emergiu como o presságio de uma era profundamente inquietante, marcada pelo retorno implacável do movimento fundamentalista ao poder e por um retrocesso devastador em sede de Direitos Humanos - sobretudo no que concerne às mulheres.
As negociações, que culminaram na assinatura deste acordo, foram conduzidas sob o manto da ambiguidade, impregnadas de uma opacidade que também esteve presente nos diálogos intra-afegãos. Essa nebulosidade semeou uma desconfiança crescente, tanto no Governo afegão da época como entre múltiplos observadores internacionais, que recearam (e bem) que a estratégia ocultasse a intenção de instaurar um regime despótico e tirânico.
Em Agosto de 2021, quando os talibãs retomaram o poder, o porta-voz do regime, Zabihullah Mujahid, proclamou publicamente que o novo Governo respeitaria os direitos das mulheres à luz, acrescentou, da sua interpretação da Lei Islâmica. A promessa não dissipou o receio de um iminente retrocesso civilizacional - e boa razão havia para tal.
Com efeito, a versão 2.0 do domínio talibã revelou-se como um mero retorno às práticas brutais que outrora haviam definido o seu regime. Sob a austera liderança de Hibatullah Akhundzada, foram emitidos mais de 50 decretos draconianos que, em pouco tempo, desmantelaram direitos, liberdades e garantias arduamente conquistados.
A condição das mulheres, sob esta nova administração, é particularmente alarmante. Foi instituído um regime de apartheid de género, onde as raparigas acima dos 12 anos estão proibidas de frequentar estabelecimentos de ensino e as mulheres se encontram sujeitas a práticas atrozes, tais como execuções sumárias, flagelações e apedrejamentos públicos - actos bárbaros que produzem um retrato visceral da brutalidade que permeia a sociedade afegã.
Neste contexto, a emanação, a 22 de Agosto, de legislação em redor de “vícios e virtudes”, traduz-se na mais recente manifestação da determinação férrea e doentia dos talibãs no alargamento da sua interpretação fundamentalista da Xaria (o conjunto de normas canónicas baseadas no Alcorão) a todos os aspectos da vida afegã.
O código despótico, implementado por um Ministério que tem por missão algo que o Governo afegã denomina de “Propagação da Virtude e Prevenção do Vício”, obriga as mulheres ao uso de um véu que obscureça, por completo, o rosto e o corpo, instruindo-as, ainda, à manutenção do silêncio em espaços públicos. Para além de violarem, inequivocamente, Direitos Humanos elementares, estas medidas criam um ambiente propício a denúncias motivadas por vinganças pessoais - onde a suposta preocupação com a observância das inclementes normas é gerada por interesses mesquinhos.
Paralelamente, os talibãs impuseram restrições severas aos meios de comunicação social, vedando a disseminação de qualquer conteúdo que não seja considerado islâmico e conferindo à chamada “polícia da moralidade” o poder de censurar materiais que contrariem a sua interpretação da lei islâmica. A proibição de música em espaços públicos e a imposição de penteados islâmicos, consistem noutros exemplos do fervor fanático em expurgar a sociedade de qualquer expressão cultural que se afaste da visão rígida, punitiva e violenta dos talibãs.
Sob o jugo talibã, a trajectória do Afeganistão compreende, inequivocamente, uma erosão sistemática da dignidade, da autonomia, da segurança e da liberdade dos seus cidadãos, especialmente das mulheres.
Ressalta, neste cenário tenebroso, a rapidez assustadora com que os avanços registados, no campo dos Direitos Humanos, podem ser revertidos, expondo a fragilidade desses direitos.
Perante isto, a ausência de uma resposta vigorosa e eficaz, por parte das instituições internacionais relevantes, levanta, inevitavelmente, questões prementes sobre o papel e a eficácia dessas entidades - concebidas que foram, precisamente, para proteger e promover os Dreitos Humanos. Se violações flagrantes desses direitos forem ignoradas ou enfrentadas com gestos simbólicos, tal corroerá a credibilidade dessas instituições, assim como dos princípios normativos que as sustentam.
Quais serão, a longo prazo, as consequências de permitir que um regime desta natureza seja perpetuado sem resistência assinalável? As respostas a esta e outras questões são cruciais, não apenas para os formuladores de políticas, mas para todos aqueles que prezam a universalidade dos Direitos Humanos e a necessidade imperativa de os defender.
Os acontecimentos que se desenrolam em território afegão, que tornam tristemente patente a vulnerabilidade dos Direitos Humanos face a ideologias autoritárias, não se circunscrevem a esse território. Num panorama mundial em que se assiste a uma reconfiguração significativa da ordem internacional, a luta pelos Direitos Humanos, tanto no Afeganistão como noutras partes do mundo, transcende o destino de uma nação.
Está em jogo, a preservação de valores universais que sustentam a coexistência pacífica e justa entre as nações, valores esses que assentam, entre outras coisas, na manutenção e na defesa de normas que, reconhecem, protegem e garantem, a dignidade intrínseca de todos os seres humanos.
Nota: A autora não escreve de acordo com o novo Acordo Ortográfico