Semanologia: Pai

Apalavra tem uma longa história, uma pluralidade de sentidos, de projeções pessoais e sociais. No vasto universo dos significantes e dos significados, "pai" diz-se sabendo da proeminência entre as infinitas combinações de símbolos, de letras, que organizam as línguas, as formas de comunicar.

Herberto Helder dizia que as mães eram a mais alta criação dos filhos. Faço uma homologia: os pais são uma alta criação dos filhos. Como pai, sinto-me criado pelo anúncio da sua vinda. Os meus filhos são as pessoas que mais me importam. Talvez seja coisa pessoal, este afeto assolapado. Talvez nos idos da História, o pai fosse, essencialmente, progenitor ou, nem o sendo, o patriarca da tribo, do clã, da família.

Independentemente da história cultural da palavra ou das vivências estatutárias do ser pai em diferentes culturas, lugares e tempos, posso dizer, que eu, pai, me sinto extraordinariamente feliz pela oportunidade de o ser. Amo os meus filhos desde a sua conceção. Antes do nascer, já tinham nascido dentro de mim, desenharam raízes novas e profundas, o fermento da alma, ainda não tinham nome e o seu poder já criara a arquitetura dos meus dias, das minhas noites. Acompanhei zeloso a gestação, o crescer dentro, o universo uterino, partilha maternal. Cruzei conversas, falei para o interior da pele, talvez, ainda ressoe a minha voz, desses dias primeiros, contando histórias, fazendo perguntas, dizendo quanto desejava encontrar as crianças por vir. Tive o privilégio de os ver nascer, extraterrestres a entrar neste mundo.

Quando bebés, não os largava do colo. Contava-lhes histórias ainda não falavam e o testemunhar as primeiras palavras, o primeiro andar, tantos momentos primeiros, são atos maiores da minha existência. Quando chegava a casa, extenuado dos trabalhos quotidianos, abrindo a porta de entrada eis que vinham numa correria incondicional gritando "pai!, pai!,", na procura do colo e dos abraços, meu Deus!, obrigado por ter vivido essas epifanias. E atirava-os ao ar e segurava-os, atirava-os e segurava-os, riam perdidamente, sabiam nada temer. Fizemos batalhas campais antológicas com armas de brincar, entre o corredor e as portas da sala, as almofadas do sofá a servir de muralha. Segurei-os nos braços nas primeiras idas ao mar, eu era a torre mais alta do castelo, contra as ondas.

As idas matinais para os deixar na escola acabaram um dia, quando, já procurando a distância desejada do adolescente, pediam que os deixasse mais atrás, antes do portão, não fossem os colegas gozar com os meninos trazidos pelo papá. Um dia, o liceu concluído, saíram, para estudar. Tal como eu, filho, não cuidei das emoções dos meus pais, na afirmação juvenil, também os meus olharam para os anos por vir, folhas brancas por escrever. Como romântico sentimental, guardo as fotografias dos seus quartos vazios, tiradas exatamente depois do momento da sua saída, dessa saída que corresponde ao fim da infância, ao começar da aventura do jovem no mundo da autonomia.

A casa sem os filhos é um poiso saturado de ausência. Tal como a perda dos pais é um dano irreparável assim também a conquista da liberdade dos filhos. Eu, pai, acompanho com a aceitação possível os caminhos deles, vigilante discreto, para a eventualidade dos episódios difíceis. Quando os recebo, jovens adultos procurando o seu projeto de vida, nem que seja para um fugaz momento, acolho aí toda a alegria do mundo. Sei que nas minhas imperfeições não deixo de ser inteiramente pai, agradeço, nas suas imperfeições, estes filhos. Afinal, mais que as imperfeições, podem as alegrias.

Por vezes, sinto-me culpado por tanta felicidade face a este amor. Afinal há muitos pais despojados desta inteireza, pelas mais diversas razões. Depois penso que não posso substituir o lugar dos outros, que a graça que me foi dada, o encanto, a devo viver sem reservas.

Um dia, eu serei pó da terra. E se o Destino e o Egoísmo me favorecerem, irei antes dos filhos.

A minha voz, o meu sangue, é um ato estendido.

Vem de trás, vai para as bifurcações do futuro.

Para quem acredita que o Tempo é linhas direitas.

Olho para o Tempo como um círculo, vejo nele antepassados e descendentes.

Desenho no chão a linha redonda e sento-me, acompanhado, dentro dela.

Contemplo a luz do fim da tarde.

O círculo solar, paulatino, adormece.

Na coberta imensa e escura da noite, irrompem pirilampos.

Há um sopro ascendente que os leva.

Até mais não serem que a infinitude das estrelas do céu.

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