Se Nero tivesse sido inspirado por um casal belga que faz magia

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A música é sobre pessoas, sozinhas ou acompanhadas, a ouvir ou a tocar, num desleixo solipsista ou numa torrente de partilha. Aqui também não há fronteiras, o que justifica a minha relação, e a de outras pessoas, com os bailaricos de aldeia, que, numa reação pavloviana, me incitam a bater o pé ou, a limite, a agarrar em alguém e começar a dançar um pasodoble à bruta. Exatamente o mesmo acaba por me acontecer sempre que ouço alguém a tocar uma pizzica, uma forma de tarantella, da região da Apúlia, em Itália. Ou uma polca, seja algures na Suíça ou no País Basco. Ultrapassada esta observação, que me parece consensual, há quase 30 anos que me interrogo sobre como é que esta pulsão natural de dançar era aplacada antes da invenção das discotecas (spoiler alert: com bailes). Sendo eu gaiteiro, vou recorrer às gaitas de fole (algumas delas até são mesmo de foles, no plural) para mostrar o encanto das raves de há 2000 anos e por aí em diante.

Há gaitas de fole desde a Tunísia ou Argélia até à Índia, pelo que dizer que este instrumento é resultado da criatividade celta será mesmo muito pouco rigoroso. Mas não vamos por aí. Estamos a falar de instrumentos com características morfológicas semelhantes entre si, como um fole e um tubo melódico. Estamos também a falar de instrumentos com nomes diferentes, sendo que o termo ibérico gaita acaba por encontrar um eco na zona dos Balcãs, na Bulgária, onde a gaita é gaida. E entre o alfa e o ómega desta equação, recuperamos nomes estranhos em culturas diferentes ligadas por instrumentos da mesma família, como mezoued, surdulina, zampogna, cornemuse, musette, cabrette, torupill, uilleann pipe, phiob mhòr, säckpipa, xeremias ou simplesmente musa. Ainda há versões de tudo isto sem foles, mas que pelos timbres e pela forma como produzem som, através da vibração de lâminas de cana, sejam ela duplas, como as dos oboés, ou simples, como as dos saxofones, podem juntar-se à lista: bombarde, alboka, zurna, duduk, launeddas e por aí em diante, numa enciclopédia natural que só é limitada por aquilo que ainda não foi imaginado.

O imperador romano Nero (entre 54 e 68 A.D.) é sobejamente conhecido, entre várias outras coisas, por ser músico. É descrito pelo autor imperial C. Suetonius Tranquillus (eu sei que este nome parece inventado, mas não é) como utricularium (outro nome que não fui eu que inventei), isto é, tocador de odre - uter, em latim -, o recipiente feito em couro que transporta vinho ou água e que é, basicamente, o fole da gaita de fole. Nero era um gaiteiro.

Foto: Vítor Moita Cordeiro

Imagino que uma pergunta se imponha: por que motivo é que alguém sopra para dentro da pele de um animal morto (espero mesmo que o animal esteja morto), com alguns tubinhos feitos em madeira a despontar, com alguns apontamentos em cana, para produzir som?

Para não me alongar num tratado improvisado e certamente mal feito sobre gaitas de fole, vou procurar apenas justificar o meu ponto de vista sobre esta expressão ancestral, que parece estar mais ligada a pastores - tendo em conta os materiais de que são feitos os instrumentos - do que a imperadores.

Foi em 2005, seis anos depois de começar a tocar gaita galega e depois de uma infância a ouvir Brigada Victor Jara e outras bandas revivalistas de música de matriz rural, que descobri um duo belga que afinal fazia magia disfarçada de música: Naragonia. A parte da magia era apenas uma alegoria. Por favor, não pensem que eles se dedicam à prestidigitação.

Pascale Rubens era apresentada por Toon Van Mierlo como a mulher mais bonita do mundo. Acho que ainda é assim que ele a apresenta. Ela toca concertina, violino e canta, e ele toca gaitas de fole francesas, irlandesas, saxofone, whistles e concertina. Quando ouço Naragonia, entro na imaginação de Pieter Bruegel (século XV) e sou as folhas de carvalho que estão a cair nos quadros que pintou.

Quando o Toon toca musette Béchonnet (uma gaita de foles francesa - e é mesmo tocada com dois foles, um em cada braço) e, em simultâneo, bate os pés no chão, a marcar o ritmo, como é típico em Auvergne, leva toda a gente atrás, como um gaiteiro de Hamelin (eu sei que o original era um flautista). E as pessoas apaixonam-se umas pelas outras enquanto a Pascale faz a harmonia nesta atualização de uma prática ancestral. Eles tocam e nós dançamos. A receita para a felicidade parece bastante simples e está aqui há milhares de anos. Só tenho dúvidas de que tenha funcionado para Nero e para a população de Roma, mas é só porque ele não conheceu os Naragonia.

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