Que lições tirar da História?

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Não falta quem veja na parceria entre Ronald Reagan e Margaret Thatcher o princípio do fim da URSS. E se é evidente que a cumplicidade entre o presidente Joe Biden e o primeiro-ministro Keir Starmer não se compara à dos seus célebres antecessores na Casa Branca e no Número 10 de Downing Street, a Special Relationship entre os EUA e o Reino Unido continua a ser de tal forma uma fonte de preocupação para o Kremlin que se tornou impossível dissociar o encontro de ontem em Washington com as ameaças belicistas de Vladimir Putin durante uma visita a São Petersburgo. “Se acontecer, irá mudar a própria essência, a natureza do conflito”, disse o presidente russo, reagindo aos planos para autorizar a Ucrânia a usar mísseis de longo alcance contra alvos na Rússia, uma exigência insistente de Kiev.

A questão das linhas vermelhas tem estado sempre presente desde que o Ocidente decidiu apoiar os ucranianos contra os russos após a invasão de fevereiro de 2022. E já houve sérias ameaças russas de retaliação quando a Ucrânia recebeu tanques e depois, mais recentemente, caças F-16. Mas desta vez o tom de Putin está a atrair maior preocupação, havendo quem considere que não está de fora a hipótese nuclear, ainda que sob a forma de uma bomba tática usada em território ucraniano. Mais provável, especula-se, seria um ataque a uma instalação militar de um país da NATO (e da UE) envolvido com especial empenho no apoio à Ucrânia, uma escalada óbvia no confronto entre a Rússia e o Ocidente, mas, mesmo assim, de uma natureza muito diferente do recurso ao nuclear, até hoje um tabu.

O nuclear assusta especialmente, e se Putin não foi explícito, já o embaixador russo na ONU, Vassily Nebenzia, relembrou que o seu país tem um arsenal de respeito na matéria. É o maior do mundo, só comparável com o dos EUA, mesmo que haja mais sete potências nucleares (uma delas é o Reino Unido de Starmer).

Há duas semanas, assinalaram-se os 75 anos do primeiro teste atómico da URSS, no Polígono de Semipalatinsk, no atual Cazaquistão. Esse 29 de agosto de 1949 é uma data-chave para entender o nosso mundo, pois o fim do monopólio americano sobre o novo tipo de arma impôs a dissuasão mútua, ou o equilíbrio pelo terror, que fez com que a Guerra Fria nunca se tornasse numa Guerra Quente. Mas se as superpotências foram capazes de se digladiar via terceiros na Coreia, no Vietname ou no Afeganistão, a ausência de recurso à tecnologia atómica (e depois nuclear) também se deveu a uma certa racionalidade dos seus líderes.

As quase 500 bombas testadas em Semipalatinsk eram, a cada passo, potencialmente mais mortíferas do que a Little Boy e a Fat Man, lançadas em agosto de 1945 pelos EUA em Hiroxima e Nagasáqui. E uma bomba nuclear pode ser hoje mil vezes mais poderosa do que as bombas nas cidades de um Japão que recusava aceitar a derrota na Segunda Guerra Mundial. Há pois excelentes razões para manter o tabu nuclear, e quem tiver dúvidas veja as imagens da destruição no Japão há 79 anos ou pergunte aos cazaques das vizinhanças de Semipalatinsk, filhos e netos dos que viam “os cogumelos muito bonitos” formar-se no horizonte, o legado da radiação, com malformações e cancros acima da média do país.

Biden e Starmer não têm obrigação de saber ler o que vai na cabeça de Putin, mas certamente têm especialistas civis e militares a dar-lhes pistas. Qual o nível de ameaça que a própria Rússia sente? Há alguma hipersensibilidade de Moscovo relacionada com a incursão ucraniana na região de Kursk, 1200km² de território controlado, 0, 001% da imensa Rússia, mas mesmo assim uma invasão inédita no pós-1945? Sentirão os líderes americano e britânico que é o momento certo para dar ao ucraniano Volodymyr Zelensky a carta branca que este tanto pede? Com a autorização de utilização destes mísseis de longo alcance (umas centenas de quilómetros, mas não suficientes para cobrir os 800 quilómetros da fronteira ucraniana até Moscovo) espera o Ocidente fragilizar a Rússia e obrigá-la a negociar um fim para esta guerra a que Putin prefere chamar de Operação Militar Especial?

São tantas as incógnitas que, de facto, há razões para temer o que aí vem. Morre-se muito na Ucrânia, também se morre na Rússia, e mesmo um choque convencional entre a Rússia e a NATO faria morrer muita, muita, muita gente, inclusive na Europa Ocidental. Mas qualquer uso de armas nucleares seria entrar noutro nível de conflito, um conflito marcado pela irracionalidade. Reagan e Thatcher souberam dar margem a Mikhail Gorbachev para liderar uma URSS em transformação sem a levar ao choque direto com o Ocidente. E Gorbachev desistiu da confrontação. Mas a URSS desapareceu em 1991 e Putin já disse que se tratou de uma enorme tragédia geopolítica. Biden e Starmer terão de tirar lições da História. E o russo Putin também. Quais tirarão?


Diretor adjunto do Diário de Notícias

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