Quanto vale a alma de povo?

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Carlos Mazón demorou, precisamente, um ano – e mais uns dias – para se demitir da presidência do governo regional de Valência, depois de em outubro de 2024 uma catástrofe ambiental ter deixado um rasto de morte (229 pessoas perderam a vida) e destruição na região. Em curso, atualmente, está um inquérito do Congresso sobre os acontecimentos daquele dia, bem como uma investigação por parte de um juiz de Valência para determinar se existem provas de crimes de homicídio por negligência e lesões causadas por negligência, que possam ter levado a mortes evitáveis.

O que se sabe é que apesar do clima de alerta na região, nenhum aviso foi feito à população até às 20h desse dia – quando dezenas de pessoas já tinham perdido a vida – e que Mazón passou a tarde a almoçar com uma jornalista ao invés de estar no centro de comando onde, alegadamente, deveria estar. É certo que pode vir a provar-se que, dada a violência dos elementos que nesse dia decidiram cair sobre Valência, pouco poderia ter sido feito para salvar quem faleceu ou ficou ferido na tragédia. Mas isso não invalida que sejam tomadas todas as medidas necessárias para o garantir. E os governantes deviam ser os primeiros a dar o exemplo de um esforço que, raramente, passa diretamente por eles. Nós, por cá, temos tido a nossa dose de episódios deste género: governantes que continuam de férias quando há incêndios de proporções dantescas – seja no continente ou nas ilhas; líderes que rejeitam responsabilidades em serviços que são da sua tutela…e desengane-se se acha que estou a falar apenas dos governantes atualmente em funções. A verdade é que temos demasiados casos a acumular-se, em muitos governos nacionais ou regionais e em diversos organismos públicos – porque nos privados se torna cada vez mais complexo graças às chamadas regras de compliance. E que sinal dá isto aos cidadãos?

Que a manutenção de um cargo, de um título, é muito mais importante que os cidadãos que juraram proteger. Que é mais relevante continuar a ser chamado de presidente, ministro ou primeiro-ministro do que fazer aquilo que prometeram quando se candidataram: agir no melhor interesse da população que têm à sua guarda. E se nem aqueles que deviam ser os mais sérios na sua função o fazem – demitirem-se quando já não é sustentável, e por pressão pública ao invés de por uma questão de consciência e seriedade, não conta – como queremos ter uma sociedade em que cada cidadão admita os seus erros e a sua responsabilidade na vida da comunidade?

Afinal, quantos cargos e que salário vale a vida de cada cidadão? Já aqui escrevi que quando os governantes legitimam uma série de comportamentos, eles se tornam aceitáveis em toda a sociedade. Quando eles os legitimam por falta de coragem, essa realidade toma contornos ainda mais graves. E talvez devêssemos todos refletir seriamente sobre isso: o que faríamos nós, se fôssemos colocados na mesma posição? Teríamos coragem para fazer diferente? A resposta espontânea a que chegar talvez seja o melhor ponto de partida para a exigência que estes tempos requerem.

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