Nos últimos dias, com alguma incredulidade dei conta de que estavam a desfilar nas páginas dos jornais – depois de terem sido divulgadas nas várias redes sociais – as imagens da campanha presidencial de André Ventura, onde se leem mensagens como “Isto não é o Bangladesh” ou “Os ciganos têm de cumprir a lei”. Pesquisei, reconfirmei, perguntei até ter a certeza de que não eram imagens manipuladas – já apareceram algumas, mas estas duas, em concreto, são mesmo verdade. Esta segunda-feira, um artigo do The Guardian chamava a atenção para o facto de que, nos Países Baixos, “se normalizou a hostilidade aberta”, algo que se tornou claro depois de o Partido para a Liberdade, de Geert Wilders, ter entrado para o executivo. O fenómeno não é inédito: no Brasil, antes da vitória de Jair Bolsonaro, vários analistas políticos que entrevistei na altura garantiam que “a conversa de boteco nunca passaria no Planalto”. Em poucas semanas, não só a conversa entrou no Planalto como se tornou comum nas ruas. Porque quando os líderes legitimam um tipo de comportamento, é difícil que se ergam sobrancelhas mesmo quando esses mesmos atos, há uns anos, fariam soar todos os alarmes e seriam rapidamente abafados pelo bom-senso e a humanidade.A Democracia é, e bem, um sistema que garante as liberdades civis – onde a de expressão está incluída – e cujos governantes são eleitos de forma justa e representativa pelo povo que representam. O que significa que muitos portugueses pensam exatamente como André Ventura – o que se comprovou, aliás, nas urnas nos últimos atos eleitorais. Mas entre o que cada um pensa e aquilo que pode fazer, vai um passo muito grande. E por isso é que existem normas que nos regem. Porque a Democracia também é um sistema que deve, segundo as regras mais básicas da sua existência enquanto sistema político garantir os mais fundamentais direitos humanos. E não precisamos de analisar toda a Declaração Universal que os consagra para termos de, rapidamente, refletir sobre esta hostilidade que, abertamente, tem tomado conta do debate e do espaço públicos. Na verdade, basta-nos olhar, com atenção, para o primeiro artigo dsse documento: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Ainda não passaram 80 anos desde que a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou e proclamou a declaração que marcou, também, uma nova era, pós-II Guerra Mundial – que começou, se bem se recordam, com mensagens muito parecidas com aquelas que agora vemos espalhadas pelas ruas e pelas redes. Por isso, talvez seja, então, boa altura de recordar uma outra frase, proferida (alegadamente) uns anos antes dessa proclamação: “A Democracia é o pior dos sistemas, com exceção de todos os outros”. Saibamos, então, não cair na armadilha de ajudar a normalizar algo que vai contra tudo aquilo contra o qual muitos antes de nós tiveram de lutar. E morrer.