Quando é o próprio Estado o promotor da demora judicial.

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O tema “reforma da justiça” é ciclicamente abordado. Todos estamos de acordo com o tema e em desacordo com as soluções.

Sejam algumas conhecidas personalidades da nossa sociedade a manifestar essa iniciativa, sejam os operadores da justiça a reclamar uma reforma coerente, sejam os governos a enunciar medidas para tal desiderato, o certo é que acaba tudo por ficar na mesma.

Dúvidas não tenho de que um ciclo acabou e outro começa agora, e o que importa antes de tudo é perceber isso mesmo.

Somente os menos atentos é que ainda não repararam que o sistema de justiça que estudámos e aprendemos a aplicar e a respeitar está há muito ferido de morte. Todos conhecemos as críticas que lhe são dirigidas e as inúmeras análises sobre a razões da sua inoperacionalidade, colocando-se o assento do mal do seu estrangulamento ora nas Leis, ora na orgânica judiciária, ora nos seus operadores ou mesmo, como está a suceder ultimamente, no tipo de cultura judiciária carregada pelos seus juízes, que, entendeu-se, escrevem muito e com palavras difíceis de decifrar pelo comum dos cidadãos.

Incentivar os juízes a escrever menos, e fazê-lo em linguagem corrente, não me aflige particularmente, sendo que tenho a certeza de que esse comportamento foi estimulado desde sempre pelo Conselho Superior da Magistratura, e para prova do que afirmo bastará verificar os sucessivos regulamentos das inspeções a que os Juízes estiveram e estão sujeitos, devendo começar-se precisamente por aí, ou seja, alterando os critérios de inspeção que privilegiam a densidade da escrita e da fundamentação doutrinal e jurisprudencial.    

Mas não passará por aí a reforma da justiça.

Enterramos a custo o Estado Moderno, e começamos a tentar entender o novíssimo Estado Pós-Moderno, que está a tentar impor-se.

Os cidadãos destes novos tempos não entendem – e a meu ver bem – a pesada máquina da justiça, estudada e implementada para ter o seu próprio ritmo e um estilo de produção sagrado.

Fala-se em celeridade, e com base nessa expectativa alteram-se os códigos e criam-se mecanismos que aparentemente tornarão o caminho, para a decisão final, mais rápido. Uma ilusão.

Importa olhar para o sistema judicial, como um todo, e começar por perceber que na Justiça Administrativa e Fiscal, por exemplo, frequentemente é o próprio Estado o principal protagonista da incerteza e demora judicial, insistindo em práticas e comportamentos já com inúmeros precedentes judiciais que lhe foram desfavoráveis.

Na Justiça Penal, e pelo seu natural mediatismo, a preocupação social é ainda mais relevante, sendo incompreensível a demora em todos os casos em que publicamente os visados foram já julgados e condenados.

Não é possível dissociar o Ministério Público deste problema, não sendo compreensível que num sistema onde a pena de prisão está limitada aos 25 anos, se procure anos a fio investigar um sem número de crimes a imputar ao seu agente, muitas vezes com provas deficientes, originando “megaprocessos” cuja complexidade os torna humanamente impossíveis de serem julgados num prazo razoável, e que, a provarem-se todos os crimes previsivelmente o limite máximo da pena de prisão aplicável é em muito ultrapassado.

Tal como sucede noutros sistemas judiciais, quem investiga e acusa tem duas preocupações que são desconhecidas em Portugal. A primeira é acusar pelo crime ou crimes que tem indícios sustentáveis e inabaláveis, deixando de lado os que não mereceram a mesma sorte. A segunda preocupação é o custo/beneficio para o contribuinte e para a sociedade do processo que investigam.

A justiça tem um custo suportado pelo contribuinte. A reposição da norma penal violada, mediante a aplicação de uma pena, é necessária para a pacificação social.

Como conjugar essas duas preocupações pelo Ministério Público?

Como dissemos, também aqui a “roda” já foi inventada noutras latitudes, tão ou mais democráticas que a nossa sociedade.

Sumariamente, direi que na medida do possível, por cada crime fortemente indiciado o Ministério Público deveria optar por um processo autónomo, sem possibilidades de conexão para efeitos de julgamento.

Sendo crime de natureza económica, a reposição patrimonial do prejudicado, seja uma pessoa individual, seja o próprio Estado, deverá ser o objetivo principal da sua atuação, sendo a pena, a ter lugar, objeto de um acordo entre a acusação e a defesa onde o arguido se declara culpado em troca de uma pena mais branda, evitando assim os custos de um julgamento, o chamado "plea bargain" utilizado nos EUA, matéria que importa conhecer uma legislação que o permita no nosso ordenamento jurídico.

É ao Ministério Público que caberá evitar um processo judicial longo e dispendioso, devendo promover e garantir uma resolução rápida para os casos que investiga.

 *Juíz Desembargador no Tribunal da Relação do Porto

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