Quando o Ministério Público defrauda as garantias de defesa dos cidadãos

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A recente operação de buscas e apreensões na TAP, que culminou na constituição de um advogado como arguido, mais do que um mero episódio mediático, representa o preocupante sintoma de como o Ministério Público (MP) com a complacência da judicatura, tem violado grosseiramente nos últimos anos as garantias de defesa dos cidadãos em processo penal, as quais têm previsão constitucional no texto fundador da nossa democracia, enquanto Estado de Direito. A justificação avançada, de que tal ato constitui uma “formalidade habitual” para viabilizar a apreensão de correspondência coberta pelo sigilo profissional, revela uma prática insidiosa que torpedeia e defrauda por completo as garantias fundamentais de defesa dos cidadãos em processo penal. Esta instrumentalização da constituição dos advogados em arguidos para através dos elementos de defesa dos cidadãos “angariar” de forma ilícita elementos incriminatórios, constitui uma grosseria fraude às garantias de defesa que a Constituição e a lei processual penal atribuem aos cidadãos visados em processos de natureza penal. É imperativo recordar que o segredo profissional do advogado não constitui um privilégio corporativo, mas uma pedra angular da administração da justiça e uma garantia essencial de defesa dos cidadãos. Na verdade, o segredo profissional que a lei prevê visa assegurar que qualquer pessoa possa procurar aconselhamento jurídico e exercer plenamente o seu direito de defesa, numa relação de absoluta confiança com o seu advogado, a coberto do sigilo profissional, sem o temor de que as suas confidências possam ser convertidas em prova contra si. O arguido em processo penal goza de direito ao silêncio, do direito de não incriminar ou ter de prestar declarações autoincriminatórias. Naturalmente, o segredo profissional não é absoluto, contemplando a lei exceções, nomeadamente, quando o próprio advogado é, verdadeiramente, e não por mera conveniência de quem investiga, suspeito da prática de um crime. É precisamente na aplicação desta exceção que reside o perigo: a sua banalização transforma uma salvaguarda do sistema numa chave-mestra para devassar a esfera privada e anular, por via indireta, os direitos de defesa dos arguidos em processo penal. Com efeito, o MP para o efeito de contornar o mecanismo previsto na lei processual penal que o obriga a suscitar o incidente de quebra de segredo profissional junto do Tribunal da Relação territorialmente competente, amiúde, sem que verdadeiras suspeitas da prática de crime incidam sobre os advogados, acaba por constituir os advogados arguidos, assim conseguindo contornar impunemente – como se não estivesse vinculado na sua atuação ao estrito princípio de legalidade – as garantias de defesa previstas na Constituição e na lei processual penal. Admitir num Estado de Direito democrático este padrão de atuação de forma corriqueira ao MP é grave e irresponsável e tem tido os resultados que todos conhecemos nas últimas décadas. Muita condenação na praça pública, muito mediatismo e as vidas pessoais, profissionais e políticas completamente destruídas. É o risco de viver dirão alguns, mas não é isso. É malfeitoria, é ilegalidade grosseira, é uma conduta processual errada e desconsiderante dos valores fundacionais da nossa democracia. Se a constituição como arguido é erigida a mero artifício processual, em vez de ser a consequência de indícios sólidos da prática de um crime, o MP adquire um poder discricionário e quase ilimitado para violar o segredo profissional e atuar á margem das regras constitucionais e legais. Bastar-lhe-á imputar genericamente um crime a um advogado para aceder a toda a comunicação com o seu cliente, neutralizando a defesa e subvertendo o equilíbrio processual. Felizmente, a jurisprudência, nalgumas decisões mais esclarecidas tem erguido barreiras a esta deriva, como no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de julho de 2016 (Processo 108/15.8JALRA-A.L1-3) que determinou, inequivocamente, que “a constituição de advogado como arguido, só por si, não integra os pressupostos de derrogação do segredo profissional” se os factos imputados forem “demasiado vagos, de baixa densidade ao nível, quer da sua materialidade, por muito genéricos, quer da sua imputação subjetiva”. O tribunal impõe uma distinção crucial entre uma prática legítima – onde a constituição de arguido se baseia em indícios fortes e concretos da participação do advogado num ilícito, com factos de “alta densidade” que distinguem a cumplicidade da assessoria – e uma prática abusiva e ilegal do MP. Nesta última, a constituição é uma mera “formalidade” para apreender documentos, a imputação é genérica e a quebra do segredo, em vez de ser uma consequência da investigação, é o seu verdadeiro objetivo que serve o propósito de investigar subvertendo as regras do estado de Direito. Esta linha de defesa judicial é reforçada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 12 de novembro de 2019 (Processo 1331/19.1T9LSB-A.L1.S1), em que o STJ detalha um incidente processual bifásico para a quebra do segredo, que exige uma ponderação judicial prévia e cuidada sobre a prevalência do interesse preponderante, e expõe como a tática da constituição de arguido como “formalidade” contorna flagrantemente este procedimento.

Em suma, o caso TAP deve ser encarado como um alarme à violação da integridade do nosso sistema judicial: a constituição de um advogado como arguido, sem indícios sólidos que o autonomizem do legítimo exercício do seu múnus, é uma tática processual que corrompe a relação de confiança entre o cidadão e a justiça e viola o núcleo essencial do direito à defesa. Cabe aos tribunais, enquanto guardiões últimos dos direitos, liberdades e garantias, aplicar a doutrina restritiva e exigente firmada pela jurisprudência, assegurando que o segredo profissional se mantenha como uma regra que deve ser respeitada e não descartável por conveniências investigatórias.

Advogado

Sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados

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