Putin anda inquieto
Vladimir Putin é um verdadeiro quebra-cabeças, no sentido literal e figurado. Face às recentes e múltiplas manifestações populares, respondeu com redobrada violência e voltou a demonstrar que, na sua visão política, não há espaço para a mínima contestação. Às aspirações democráticas contrapôs os bastões das polícias e a detenção de milhares de cidadãos.
Especialistas em política interna russa dizem-me que, pela primeira vez, Putin não se sente tranquilo. Vê o que se passa na Bielorrússia e teme o contágio. Ainda, o oponente Alexei Navalny aparece, hoje mais do que nunca, como uma ameaça a sério.
A coragem que Navalny demonstrou, ao regressar pelo seu pé a Moscovo, apesar de saber que se ia meter na boca do lobo, impressionou uma parte dos seus compatriotas. Mostrou determinação, que é uma das principais qualidades exigidas a um líder político. Por outro lado, temos a divulgação nesta semana, também por Navalny, de um longo vídeo que exibe o luxuoso palácio que Putin mandou construir para seu uso nababo. A reportagem sobre esta extravagância imensa, uma versão delirante de Versalhes no mar Negro, está a ser vista por milhões de cidadãos. Quem sabe destas coisas considera que o impacto político do vídeo sobre a imagem de Putin é fortíssimo. Se assim for, confirma-se o que sempre disse: para fazer sair o autocrata é preciso abalar a sua alegada autoridade moral junto dos cidadãos. O nome de Putin precisa de ser diretamente associado à corrupção em alta escala que existe nos meandros da elite em que se move.
É fundamental mostrar que o abuso do poder e a falta de ética têm como objetivo a satisfação do ego e da ganância pessoal do presidente.
Putin também é um quebra-cabeças para os dirigentes da UE. Após seis anos de sanções europeias contra o regime russo, o que se conseguiu obter foi nada. Antes pelo contrário, as sanções oferecem-lhe um pretexto para reforçar a sua narrativa nacionalista, para propalar que o Ocidente é contra a Rússia e que o seu papel histórico é o de defender a pátria e a alma russas.
Na realidade, as medidas adotadas pela UE contra a autocracia e a hostilidade do Kremlin são pouco incisivas. Frente à Rússia, Angela Merkel e outros europeus a ocidente da Alemanha dão uma no cravo e outra na ferradura. Não atingem o centro do poder e não tocam, senão ligeiramente, numa das principais fontes de receitas das suas finanças públicas, o gás. O exemplo mais flagrante é o projeto Nord Stream 2, que está quase concluído. A passagem à fase operacional desse gasoduto tem de ser vista como uma oportunidade para um diálogo político que inclua, por exemplo, a libertação de Navalny e de outros presos políticos, o fim quer dos ataques cibernéticos contra alvos estratégicos europeus quer do apoio pelo Kremlin a movimentos neofascistas alemães, franceses, italianos e outros. Ou seja, a entrada em funcionamento do Nord Stream 2 tem de estar ligada ao restabelecimento de uma plataforma de confiança política entre as partes.
Entretanto, Joe Biden e Vladimir Putin tiveram uma primeira conversa. Para além de ter permitido perspetivar a continuidade do tratado sobre o controlo de armas nucleares, o New Start, que havia sido assinado em 2010 e que expirava daqui a oito dias, o presidente norte-americano marcou claramente a sua posição em matérias relacionadas com a soberania da Ucrânia, a espionagem e os ciberataques praticados pelos serviços russos, e a defesa, incluindo a proteção dos aliados de Washington. Sublinhou igualmente que Navalny deve ser libertado. Esta maneira de tratar com Putin aponta a linha que deve ser seguida pelos europeus. Uma linha aberta, clara e firme, baseada no contacto permanente com Moscovo e na referência constante aos valores da democracia. Os mesmos valores que mobilizam milhares de cidadãos russos, apesar do frio e da repressão.
Conselheiro em segurança internacional. Ex-representante especial da ONU