Proibir o telemóvel na escola: da boa intenção à (possível) intervenção desproporcionada

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A publicação do Decreto-Lei n.º 95/2025, de 14 de agosto, que proíbe o uso de telemóveis nas escolas do 1.º e 2.º ciclos, marca um ponto de viragem na relação entre tecnologia e educação. Embora compreenda a intenção, questiono se a proibição é o melhor caminho ou se, paradoxalmente, estamos a abrir portas a consequências mais graves do que o problema que se pretende resolver. Se corremos o risco de transformar um problema de gestão escolar num eventual problema judicial?

É legítimo que pais e educadores se preocupem com os riscos associados ao uso de smartphones por crianças. A exposição ao mundo virtual sem supervisão pode comprometer o bem-estar, a concentração e até a segurança dos alunos. A escola deve ser um espaço protegido. A escola, enquanto espaço formativo, deveria ser capaz de gerir comportamentos sem recorrer à interdição absoluta, investindo-se em educação digital, mediação e responsabilização. A proibição do uso de telemóveis parece ser mais um sintoma da nossa incapacidade de educar para a responsabilidade do que uma solução eficaz.

Concordo que uma criança não precisa de um telemóvel, muito menos de um smartphone com acesso (irrestrito) à internet. Sem esquecer que a escola dispõe de meios suficientes para contactar os encarregados de educação em caso de necessidade.

Mas a polémica terminou com a publicação da proibição. Ou será que não? É que apesar de proibir, o diploma não explica como. Pode a escola ou o professor apreender o telemóvel? O que acontece ao telemóvel apreendido? Quem o guarda? Como e quando se devolve e a quem? Apenas aos pais? Esta omissão pode gerar desigualdades entre escolas e interpretações contraditórias que se situarão entre o rigor e a complacência. Nas escolas onde os diretores assumem as normas de forma férrea, a proibição será cumprida escrupulosamente, podendo dar origem ao competente processo disciplinar previsto no Estatuto do Aluno e Ética Escolar. Noutras, poderá fazer-se “vista grossa”, criando um ambiente de ambiguidade que mina a autoridade da norma. No limite, podemos ficar presos eternamente no “É proibido, mas pode-se fazer”, citando-se um famoso sketch que parodiava um, ainda mais famoso, comentador político.

Assumindo-se que as penalidades pela prevaricação da proibição, são aquelas a que as escolas podem lançar mão no presente para regular os demais comportamentos desafiantes (medidas corretivas ou sancionatórias), podemos antecipar que, no limite, algumas situações chegarão às Comissões de Proteção de Crianças em Perigo e aos Tribunais.

Imaginemos uma criança que insiste em levar o telemóvel para a escola, com o apoio dos pais. A escola aplica sanções, sem sucesso. Os pais não colaboram. A escola comunica à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). A CPCJ, sem consentimento dos pais, remete o caso ao Tribunal. Tudo isto por um telemóvel. Será um cenário inverosímil?

Infelizmente, não. O Estatuto do Aluno e da Ética Escolar prevê a comunicação à CPCJ em caso de incumprimento das sanções ou dos deveres dos encarregados de educação. A Lei de Proteção de Crianças e Jovens determina que, esgotada a capacidade de intervenção das entidades de primeira linha, a situação deve ser comunicada à CPCJ. As CPCJ têm instruções da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) para instaurar processos de promoção e proteção para todas as comunicações de perigo recebidas. Para a remessa ao Tribunal é suficiente que os pais não prestem consentimento. Da intervenção mínima à intervenção máxima “vai um passo de um anão”, como canta Sérgio Godinho em O Charlatão (Os Sobreviventes, 1971).

As CPCJ e os Tribunais enfrentam sobrecarga crónica. Mas a falta de meios e de articulação transforma casos simples em processos complexos, com custos humanos e institucionais elevados. O sistema está depauperado da sua eficácia e eficiência, com processos a mais para gente a menos, e com uma intervenção de primeira linha praticamente inexistente em muitos territórios. Há um conjunto significativo de crianças e suas famílias que carecem de uma intervenção mínima, consensual e eficaz por parte do conjunto das Entidades com Competência em Matéria de Infância e Juventude, mas que, pelas razões referidas, rapidamente são presentes a Tribunal, com tudo o que isso implica para a criança, para a família e para o Estado.

Proibir pode parecer simples, mas a execução é tudo menos isso. Na maioria dos casos, este não será o desfecho e, certamente, imperará o bom senso.

Acredito que quem pugnou pela proibição não desejasse semelhante desfecho. Estou convencido de que não será esta a intenção do legislador. Alguns, ao lerem esta hipótese, acha-la-ão estapafúrdia. Na verdade, também eu concordo que ela tenha essa qualificação. Mas, tenho visto demasiadas perplexidades no Sistema de Proteção de Crianças em Perigo para nem sequer a perspetivar. O tempo dirá se estou, como espero, equivocado.

Psicólogo. Mestre em Administração Público-Privada pela FDUC

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