Enunciar com clareza os princípios que estruturam as políticas públicas de cultura e as medidas que as corporizam ou que delas decorrem é um dever. Desde logo, porque o debate em torno da ação governativa, ao invés de valorizar episódios e de explorar o potencial mediático da polémica, tem de se centrar nessas medidas, convocando ideias e estruturando pensamento crítico. Colocar questões, estimular o debate em torno de princípios e fins, rever categorias e entendimentos, muitos dos quais ultrapassados, é obrigatório e faz parte da mudança. De outro modo, não se discutindo a cultura, será difícil reivindicar os meios que urge atribuir-lhe e afirmar o seu tão convocado papel social e económico.Como se materializa uma conceção democrática e participada de cultura? Um bom princípio será fazer corresponder as duas noções em questão, “democrática” e “participada”, à realidade cultural. Identificando à partida múltiplos pontos de desconexão, é fundamental examinar em permanência o sistema cultural e as estruturas que, no Ministério da Cultura, desde logo, lhe deverão corresponder. Igualmente imprescindível, em termos de metodologia, é mobilizar o âmbito teórico e o sentido prático. Tenho abordado a cultura enquanto recurso primordial e área governativa de serviço público. Do mesmo modo, tenho assumido o dever de investir, proteger e valorizar todas as áreas, sem exceção, o que significa que – uma vez legitimadas e reconhecidas pelo coletivo – todas as manifestações culturais são legítimas, não havendo lugar a denegações e exclusões. Neste contexto, julgo oportuno afirmar aqui que a noção de cultura que partilho não corresponde apenas a um conjunto de bens – por maior que seja a abrangência e a diversidade a que a expressão possa remeter – nem se destina ao usufruto de uma minoria. Sendo múltiplas as possibilidades semânticas da noção de cultura, que foi já definida como a palavra “forra-tudo”, parece-me sempre oportuno o paralelismo entre Cultura e Natureza. Sendo recursos primordiais, inscrevem ambos os princípios da diversidade e da interação, ou do hibridismo; remetem para a obrigatoriedade de se garantir a preservação, o bom estado de conservação e a manutenção de que todos dependemos e de que todos fruímos. Talvez valha a pena reiterar, mantendo ainda a comparação entre estes dois recursos matriciais da nossa vida, que todos temos o direito constitucional de fruir e o dever de preservar.Uma questão que deverá aqui ser analisada com detalhe, pela sua relevância e por serem recorrentes as interpretações falaciosas, diz respeito à relação entre o passado e a criação contemporânea. Ao contrário do que amiúde se afirma, não existe qualquer dimensão conflitual entre estas duas instâncias, entre os diversos patrimónios que do passado chegaram até nós e a criação atual. Pelo contrário, o processo com o qual se edifica a cultura, a transmissão cultural, assente no princípio da preservação e da permanente interação com o passado, com a História, inclui naturalmente a dimensão do contemporâneo. Os diferentes patrimónios acumulados – não apenas monumentos, objetos, artefactos, modos de fazer, mas também textos, imagens, músicas, danças... – ganham novos significados neste processo, nas sucessivas apropriações e reinterpretações, ou seja: os legados que herdámos e que nos cabe preservar assumem uma dimensão contemporânea quando sujeitos à apropriação e à interrogação teórica do presente.Uma série de razões, desde logo históricas, leva-nos a considerar totalmente desajustada a categorização segundo a qual a valorização do património é “política de direita” e a criação contemporânea é “política de esquerda”. Na primeira metade do século passado, quando uma conceção limitada de cultura se opunha às vanguardas e persistia em não incorporar o pensamento e a criação contemporâneos, foi necessário investir contra o passado. A conotação depreciativa de passado e de património, muito especialmente o museu de arte que então se comparava aos espaços da morte, remete para este contexto. E as categorias designativas a que se aludiu, a cultura como sendo de direita ou de esquerda, são reminiscências desse passado. Aprofundando a questão, será necessário, ainda, perceber até que ponto os ideais de desenvolvimento e de progresso, nas últimas décadas, configuraram a matriz do nosso pensamento e deram à noção de passado a conotação de atraso e de retrocesso.Será importante insistir, também, no alcance da noção de interação cultural. Sendo as culturas híbridas e dinâmicas por natureza, é evidente que o âmbito identitário de cada uma se constrói e reconstrói sucessivamente nos corredores da história. A identidade não é única e imutável, como será evidente. E as tensões neste campo são legítimas, sobretudo porque “é real o medo de dissolução de uma cultura por contaminação externa” – da globalização à imigração, do turismo massificado à exclusão, ao esquecimento de manifestações culturais concretas. No que respeita a esta última questão, é importante assumir que o abandono do mundo rural e a subvalorização das práticas culturais que lhe estão associadas configuram uma situação de emergência. Intervir neste domínio constitui para mim uma prioridade.Compete ao Estado definir e garantir políticas em três planos fundamentais: o da preservação e transmissão cultural; o da criação e produção; o do usufruto dos bens culturais. O dever de transmissão cultural, envolvendo a noção de legado, de herança cultural no sentido mais lato do termo, é de extensíssima e magna responsabilidade. Do mesmo modo, se assume o âmbito criação-produção, que inscreve o dever de garantir um tecido artístico vigoroso traduzido na oferta plural, do cinema e da música ao design, das artes performativas e visuais às manifestações artísticas cuja natureza ultrapassa categorias apertadas. Não deixar para trás, não esquecer, não “perder o ouro”, ou seja, “dar futuro ao passado”, são, entre outros, deveres de reconhecer, de investigar, de transmitir e de investir. Além do mais, refira-se que a abrangência, a diversidade e a equidade implícitas na noção alargada de cultura aqui enunciada derrubam barreiras e eliminam categorias obsoletas, tais como a de “alta cultura” associada ao “erudito” e ao usufruto limitado dos bens incluídos nessa categoria, por oposição à noção de “baixa cultura” referente ao consumo massificado e ao “popular”. Não obstante as fragilidades intrínsecas à formulação destas categorias, conotadas hoje com a arrogância e a desconfiança, é preciso ter em conta que a realidade que as poderia ter sustentado ou justificado no passado mudou profundamente. Desde logo, porque a revolução tecnológica e os recursos da internet alteraram a relação entre produção e consumo, assim como alteraram profundamente os canais de distribuição. A criação e a partilha de conteúdos, a capacidade de alcançar públicos com enorme expressão estão hoje disseminadas à escala global.O objetivo de materializar uma conceção democrática e participada de cultura implica diversos exercícios, tanto de conceção e análise, como de concretização, cuja complexidade ultrapassa esta abordagem sucinta. No entanto, clarifico que o propósito de reverter a ausência do Ministério da Cultura nos diversos territórios é servido pelo princípio fundamental – “Agir em todo o País” –, estruturante das políticas culturais que temos vindo a concretizar no âmbito da presente legislatura. Em primeiro lugar, através do reconhecimento da importância da Biblioteca Pública e da ampliação do seu papel na vida cultural das comunidades. Trata-se do equipamento cultural que existe em maior número, mais disseminado pelo País Continental e Ilhas, já que, dos 308 municípios portugueses, 303 dispõem de Biblioteca Pública. Garantir a sua transformação em Unidades Culturais de Território (UCT), através da celebração de contratos-programa com os 308 municípios para o cofinanciamento de um conjunto de medidas que configuram uma programação cultural e artística regular a cada Biblioteca Pública, com enquadramento financeiro no Orçamento de Estado de 2005, é um processo decisivo em curso. Do mesmo modo, ou através do mesmo princípio, estruturado em medidas de longa-duração, assumimos a criação de Unidades Patrimoniais de Território (UPT) para garantir a ação do Ministério da Cultura nas áreas de inventário, investigação e preservação do património cultural em pontos estratégicos do País, de modo a minimizar as graves consequências que decorrem da extinção, em 2023, das Direções Regionais de Cultura.Uma série de medidas, como seja a alteração dos processos de seleção, nos campos disciplinares da arquitetura e da arte contemporânea, para as representações oficiais nas bienais de Veneza, tem no horizonte a participação alargada. Do mesmo modo, a democratização do acesso aos bens culturais expressa-se no acesso gratuito dos portugueses ou residentes em Portugal aos 37 museus, monumentos e palácios sob a tutela do Ministério da Cultura (Acesso 52) ou no desconto de 50 % no acesso de jovens aos teatros nacionais (Teatro 50%). No plano dos incentivos à criação e à produção, refira-se, a título de exemplo, o programa de “Bolsas de Criação Literária e Ensaística”, com condições que obrigam a uma distribuição equitativa das bolsas por todo o País e que preveem condições mais estimulantes e favoráveis, acabando, designadamente, com a obrigatoriedade de exclusividade remuneratória do bolseiro e aumentando de 12 para 24 as bolsas. Impõe-se, portanto, concretizar uma conceção democrática e participada da cultura. Ministra da Cultura