Carros voadores, colónias humanas em Marte e livros a condicionar o debate mediático são coisas que fazem parte do reino da ficção. Pelo menos, em Portugal. Espanha não tem viaturas pelos ares nem prepara uma expedição interplanetária, mas ter livros a iniciar discussões públicas intensas e duradouras é algo tão normal como o touro de Osborne. España vacía, de Sergio del Molino, é um desses livros. Publicado em 2016, analisa o abandono de vastas áreas rurais espanholas, contrastando-as com o dinamismo das cidades lotadas. A demografia, a geografia e a história conjugam-se para examinar as causas e os efeitos da desertificação num ensaio inteligente, muitíssimo bem escrito, que se engrandece com as adendas íntimas e literárias do autor. Sobrevém do livro um tema mais profundo e melindroso, o da identidade de Espanha como nação. Del Molino recorre à imagem estafada das Duas Espanhas, não para discorrer sobre a velha e errada tese de um país partido ao meio, de costas voltadas, com especial propensão para conflitos fratricidas, mas para lhe dar uma volta hábil: a grande divisão não está entre esquerda e direita, entre norte e sul, nem tão pouco entre nacionalismo central e nacionalismos periféricos; a verdadeira dualidade está entre o rural, pobre e esquecido, e o urbano, próspero e cosmopolita. Inferem-se daqui algumas conclusões importantes que desmentem os comentários habituais sobre Espanha. Primeiro, trata-se de um país normal, semelhante a tantos outros, sem atavismos fatais. Segundo, rural e urbano complementam-se, sendo a sua existência impossível fora dessa complementaridade. Terceiro, parte das soluções para os problemas do chamado mundo rural encontra-se nas metrópoles, sendo a lógica inversa igualmente verdadeira. Por último, a forma como se discute política nas grandes cidades tem um ângulo morto bastante amplo, não urbano ou periférico, que é cada vez mais evidente em momentos de eleições. Não houve rádio, jornal, televisão ou rede social que ficasse imune à voragem do debate suscitado por España vacía. Entusiastas e críticos de Del Molino digladiaram-se com um entusiasmo que o assunto não fazia adivinhar. A discussão teve inúmeras ramificações, como, por exemplo, saber se Espanha está ‘vazia’ ou se foi ‘esvaziada’ – isto é, se a desertificação, que o autor considera o grande trauma nacional, foi o produto de contingências históricas, ou se nasceu da incúria de políticas públicas. O livro entrou de supetão nos debates parlamentares e, ainda que maneira inadvertida, fomentou a criação de vários partidos na Espanha dita vazia, cujas agendas se limitam às consequências da desertificação do interior, em particular a falta de investimento e de infraestruturas. Visto deste lado da fronteira, o fulgor e o alcance das discussões públicas suscitadas por um livro soam a ficção científica. Vantagens de ter elites leitoras. Porém, o que mais confrange é ver Portugal em chamas e saber que há países nada distantes onde se discute a sério o interior. Confrange ainda mais perceber que as soluções pátrias para a recorrência anual dos incêndios passam por palavrões como descentralização e regionalização, quando o exemplo vindo de Espanha em momentos de crise (incêndios, covid-19, DANA em Valência e outros) sugere o contrário: maior coordenação central de recursos e procedimentos. Por razões históricas e de liça política, Espanha resiste a esta aprendizagem, mas já a percebeu. Porventura delatando uma inclinação iberista, confrange ver que as áreas rurais portuguesas e espanholas, embora diferentes, padecem dos mesmos problemas e são muitas vezes fronteiriças, mas os dois países são incapazes de pensar os seus territórios em conjunto. Perdem as populações, a economia e o ambiente. Já vai sendo tempo de assumirmos que há outro país, o Portugal vazio. Politólogo.Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.