Portugal, migração e credibilidade

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Passada uma semana sobre a notícia de que Portugal perdeu o financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para os dois novos centros de instalação temporária de imigrantes, ainda não houve qualquer explicação pública por parte do Ministério da Administração Interna (MAI) ou da Polícia de Segurança Pública (PSP).

O silêncio é tanto mais notório quanto maior foi o destaque dado a este projeto, apresentado pelo Governo como uma das peças centrais do pacto nacional para as migrações e o culminar de uma nova política governamental que pretende afirmar a imigração legal como instrumento de desenvolvimento e coesão social.

No Parlamento, a ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral, apenas garantiu que Portugal “não perdeu os 30 milhões de euros” e que a verba será “reprogramada para outras finalidades”, assegurando que a construção dos Centros de Instalação Temporária (CIT) “será financiada por outra via”.

Admitiu que “vários fatores” levaram ao atraso e que os dois centros, previstos para Lisboa e Porto, não poderiam estar concluídos até julho de 2026, prazo-limite do PRR. Mas a explicação ficou por aí. Não se sabe que fatores foram esses, quando foram identificados ou que medidas foram tomadas para os corrigir.

Os CIT não são um detalhe técnico. Têm um papel essencial na gestão do sistema migratório português e europeu: destinam-se a alojar temporariamente cidadãos estrangeiros em situação irregular ou sujeitos a processos de afastamento, garantindo condições dignas e acompanhamento legal, de acordo com as normas da União Europeia (UE).

A sua criação respondia a uma exigência concreta do novo Pacto Europeu para as Migrações e o Asilo, que impõe aos Estados-membros a existência de infraestruturas adequadas para acolher, identificar e avaliar se os migrantes reúnem as condições para ficar no país — incluindo os que sejam realocados de outros países ao abrigo de mecanismos de solidariedade europeia.

Ao reforçar estas capacidades, Portugal demonstraria à UE que cumpre os padrões humanitários e operacionais exigidos, substituindo soluções improvisadas, como a permanência de migrantes em quartéis militares, pavilhões desportivos, ou instalações não preparadas, como já aconteceu.

Outros países já dispõem de centros deste tipo, que permitem às autoridades gerir fluxos irregulares com maior transparência, segurança e respeito pelos direitos fundamentais. No caso português, a criação de dois novos centros, com capacidade total para cerca de 300 pessoas e um custo estimado em 30 milhões de euros, seria um sinal de maturidade institucional.

O projeto estava inscrito no PRR e cabia à PSP a sua execução, com conclusão prevista até 2026. Seria, além do mais, uma oportunidade para qualificar a resposta do Estado e reforçar a confiança dos cidadãos de que a política migratória é, simultaneamente, humanitária e firme. Ao perder o financiamento europeu, o Governo não perde apenas recursos: perde um instrumento essencial de credibilidade, tanto interna como externa.

Não se trata de um simples contratempo administrativo. A ausência de esclarecimentos sobre o que falhou — se na calendarização, na gestão do projeto ou na articulação entre entidades — levanta questões inevitáveis de responsabilidade.

No limite, levanta a dúvida sobre se a política do Governo está a ser sabotada administrativamente. O que seria profundamente grave.

Num momento em que o debate sobre a imigração se torna cada vez mais polarizado, o silêncio institucional deixa espaço livre a especulações e a narrativas que distorcem a realidade. É precisamente neste vazio que prosperam discursos populistas, que exploram qualquer falha do Estado para transformar um problema de gestão em argumento ideológico.

É legítimo que, nesta fase, a prioridade do Governo não seja fazer rolar cabeças, mas si encontrar uma solução alternativa que garanta que o projeto avança. Ainda assim, o modo como o processo é explicado conta muito para as perceções, cuja importância o Governo valoriza.

A comunicação política não se esgota em assegurar que “os centros vão ser construídos”. É importante esclarecer o que falhou, quando e porquê. Quando se trata de um projeto que simboliza o culminar de uma política pública — e que foi apresentado como tal —, esta transparência é essencial.

A confiança dos cidadãos constrói-se tanto na capacidade de concretizar políticas como na forma de responder quando algo corre mal. Manter em funções, sejam políticas ou técnicas, quem comprometeu um dos eixos estruturais da política de migrações sem uma explicação clara poderá não quebrar apenas a lógica interna do Governo; pode afetar também a perceção de seriedade e de controlo que sustenta a credibilidade de toda a estratégia.

Mesmo que, nesta fase, se compreenda a prudência em não precipitar decisões, a ausência de prestação de contas não é sustentável por muito mais tempo.

Os CIT são a materialização de uma visão sobre o país que queremos ser — aberto, regulado e solidário, mas também responsável e previsível. O financiamento pode ser reprogramado; a confiança pública, uma vez perdida, dificilmente se reconquista.

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