Portugal e Marrocos, a facilidade de convívio

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Existe um paradoxo nas relações entre Marrocos e Portugal. Por um lado temos dois países geograficamente próximos, dois países que têm uma herança comum, onde há complementaridade, mas, ao mesmo tempo, as relações não são muito desenvolvidas, quer se trate de trocas humanas, comerciais ou de investimentos cruzados. Isto interpela qualquer observador objetivo da realidade das relações entre Marrocos e Portugal”, dizia-me, não há muitos anos, o sociólogo Driss Guerraoui, membro da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia do Reino de Marrocos. Veio a Lisboa para apresentar o livro Marocains et Portugais - Regards Croisés, e na entrevista publicada no DN o título foi: “No imaginário dos marroquinos a colonização portuguesa nunca foi uma colonização arrogante”. Confesso que hesitei, na altura, em destacar antes o facto, segundo garantia o académico, de que “91,5% dos marroquinos gostam de Portugal e dos portugueses”.

A questão colonial, de facto, passou à História na relação entre os dois países, ao contrário do que acontece por vezes entre Marrocos e outros países europeus. A isso não é estranho que Portugal tenha desistido de Mazagão no século XVIII, pondo termo a uma presença na costa marroquina que começou em 1415, com a conquista de Ceuta, ponto de partida para o Império, mas mais parecido com a Reconquista do que com os Descobrimentos que viriam depois.

No ano passado, Lisboa e Rabat celebraram, aliás, os 250 anos do tratado de paz e comércio que se seguiu ao fim da presença em Mazagão, a atual El Jadida. Num artigo de opinião publicado no DN, o embaixador marroquino em Lisboa, Othmane Bahnini, falava, aliás, da “amizade e da harmonia que une o Reino a Portugal há 250 anos, selada pela assinatura, em 1774, de um tratado de paz entre o Rei Sidi Mohammed Ben Abdellah e o Rei D. José I.”

Se a paz é um facto consolidado de há muito, o comércio bilateral ainda fica abaixo das expectativas, se bem que esteja a crescer nos últimos anos, e também existam investimentos de um lado e do outro. Afinal, se Portugal reclama sempre um destino africano, Marrocos é a mais próxima das Áfricas. É também, sublinhe-se, um país com grande dinamismo, fruto de uma economia diversificada, que lhe permite ter hoje o quinto maior PIB do continente africano. A favor do fortalecimento das relações económicas joga também a estabilidade política no reino, reconhecida pela União Europeia, que tem Marrocos como parceiro estratégico.

Esteve esta semana em Lisboa o ministro marroquino dos Negócios Estrangeiros, Nasser Bourita, a convite do homólogo português, Paulo Rangel. No comunicado final, as relações históricas são referidas, e, claro, também merece destaque a organização conjunta de Portugal, Marrocos e Espanha do Mundial de Futebol de 2030, a primeira vez que um campeonato da FIFA será disputado em dois continentes (três, porque por ser o ano do centenário do Mundial do Uruguai, também haverá alguns jogos na América do Sul). A liderança de Mohammed VI (promotor da tal estabilidade e do desenvolvimento) merece igualmente elogios, mas ainda mais relevante é o apoio português ao plano de autonomia para o Saara Ocidental, antiga colónia espanhola que há meio século espera definição de estatuto pelas Nações Unidas. E passo a citar o ponto 11 da Declaração Conjunta: “No que diz respeito à questão do Saara, Portugal reconhece a importância desta questão para Marrocos, bem como os esforços sérios e credíveis envidados por Marrocos, no âmbito das Nações Unidas, para alcançar uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável para as partes. Os dois ministros reafirmaram o seu apoio à resolução 2756 do Conselho de Segurança da ONU, que destacou o papel e a responsabilidade das partes na busca de uma solução política realista, pragmática, duradoura e baseada no compromisso. Neste contexto, a República Portuguesa reafirma o seu total apoio à iniciativa marroquina de autonomia, como a base mais séria, credível e construtiva para a resolução deste diferendo, no âmbito das Nações Unidas.”.

Não foi a primeira vez que a diplomacia portuguesa expressou este apoio à iniciativa marroquina, mas a evolução internacional da situação no Saara Ocidental, ou Províncias Saarianas, atraiu a atenção da imprensa internacional para o que foi agora dito em Lisboa, ao ponto de a agência Reuters ter feito uma peça com o título “Portugal sinaliza apoio ao plano de autonomia de Marrocos para o Saara Ocidental”, explicando depois no texto que “Portugal juntou-se a outros países ocidentais ao expressar uma visão positiva da proposta de autonomia de Marrocos para a região disputada do Saara Ocidental, depois de o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Paulo Rangel, ter afirmado na terça-feira que o plano tinha uma ‘base séria e fiável’”.

É conhecida a relação difícil entre os vizinhos magrebinos Marrocos e Argélia, em grande medida por Argel apoiar a Frente Polisario, que desde 1975 exige a independência do Saara Ocidental, e, portanto, a decisão portuguesa terá sempre algum impacto além-mar, num país que Lisboa também tem como parceiro. Mas certamente mereceu grande ponderação, não se limita ao atual governo, e obedece à lógica de reforçar laços com aquele país que, depois de Espanha, é o nosso mais evidente vizinho, o vizinho do Sul.

Um dia, numa conversa com o poeta Nuno Júdice, perguntei-lhe se sendo algarvio, aquela ideia do legado árabe, do Al-Andaluz, contava para ele mais especialmente. Respondeu: “Conta muito porque quando fui pela primeira vez a Marrocos senti-me de repente no Algarve que eu tinha conhecido no tempo da minha infância. A arquitetura, as cores das casas, as ruas e a própria comida, os sabores de pratos que tinha conhecido no Algarve e que a minha avó fazia, encontrei-os do outro lado, além da facilidade de convívio com pessoas com uma cultura muito próxima da nossa. Aquela parte de mar que nos separa é, no fundo, um obstáculo apenas geográfico”.

Voltando ao professor Guerraoui, e aos alertas que nos deixou, não deixemos de desenvolver as relações luso-marroquinas, pois o mar que nos separa, por ser “um obstáculo apenas geográfico”, não é um obstáculo incontornável se houver vontade - como parece haver - de aproximar os países.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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