roubam-me a voz quando me calo, ou o silêncio mesmo se falo - aqui d’el rei! Jorge de Sena Perdoem-me que, das revistas que ameaçam acabar por falência dos seus proprietários, eu distinga especialmente o JL, Jornal de Letras, com todos os seus anos a acompanhar a cultura portuguesa e a divulgá-la pelo nosso país e pelo mundo..Com o domínio das editoras e dos jornais pelas traduções de literatura em língua inglesa, o mínimo de atenção crítica regular ao que se escreve em português ficou confinado à revista Colóquio Letras e ao Jornal de Letras. Este sinal que nos dá a crise do JL significa a pouca importância que o mercado e os formadores de opinião dão à nossa cultura e, particularmente, à literatura que se vai escrevendo e publicando da autoria dos “indígenas” que nós somos, essa pequena contribuição que damos à World Literature, que às vezes até dá pela existência de outras línguas que não o inglês..Mas não podemos ficar pelas lamentações e consolações. Temos necessariamente de criar formas alternativas de chegar com os nossos livros ao público: é uma tarefa e um dever que recai sobre autores, editores e livreiros, e todos aqueles que têm ainda o livro como bem essencial às suas vidas..Não é o apocalipse, não é o fechar definitivo das janelas que os livros nos abrem para o mundo. Será necessário mobilizar todos os recursos da era digital para contrariarmos a digitalização e manipulação das nossas mentes. E encontraremos saídas..Pascal distinguia o “esprit géométrique” do “esprit de finesse”. É evidente que precisamos igualmente dos dois..Mário Soares, de quem festejamos o centenário do nascimento (não, não estou a mudar de assunto) era um leitor atento e um verdadeiro espírito literário, porque sensível à realidade para além das suas manifestações mais imediatas, e capaz de construir alternativas e de afirmar o possível contra o aparentemente inevitável..Poderemos chamar-lhe “esprit de finesse” ou “serendipity” - eu ouso chamar a essa capacidade superior de um político um espírito literário, um pensamento dotado da capacidade de mudar o real..Proust dizia: “Só pela arte podemos sair de nós, saber o que vê um outro desse universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens ficariam, para nós, tão desconhecidas como as que poderão existir na Lua.” E a única afirmação datada deste texto é a que se refere às paisagens da Lua. Nós já as conhecemos, nós já chegámos lá. Porque somos criadores e não meros instrumentos manipuláveis..E Italo Calvino: “As coisas que a literatura pode investigar e ensinar são pouco numerosas mas insubstituíveis: é a maneira de olhar o próximo e a si mesmo, de atribuir valor a coisas pequenas e grandes, de encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela, e a sua força e o seu ritmo, e o lugar da morte, de modo a pensar nela e não a pensar, e de outras coisas necessárias e difíceis, como a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor.”.Não nos deixemos roubar de tanta coisa que a literatura nos traz. E mesmo aqueles que encaravam com um pedante desdém o Jornal de Letras irão ver, se ele acabar, que com a sua existência e persistência nós éramos felizes e não sabíamos, como a outro propósito disse recentemente uma bem conhecida personalidade política..Não deixemos que nos roubem o JL. Como gritava Jorge de Sena: aqui d’El Rei!