Quem ouve discutir o SNS, quer nas televisões, quer na rádio, só pode tirar a conclusão que se vive no caos. Ora nada é mais injusto. O nosso SNS continua a ser um dos melhores do mundo. Claro que vive, e não é de agora, enormes dificuldades, a maior das quais é a falta de médicos, sentida com enorme impacto para preencher escalas de urgência nos vários níveis de necessidade, e para conseguir dar médico de família a mais de um milhão de habitantes. Mas mesmo algumas urgências com equipas completas não conseguem dar resposta em tempos eficazes, por terem demasiada procura. A carência de médicos nas equipas de urgência tem vários níveis de exigência, precisam de quem receba os doentes e se aperceba da gravidade e os encaminhe para os mais diferenciados e especializados, que têm de lá estar também em presença física. Para manter uma urgência a funcionar 365 dias por ano, 24 horas por dia, sabendo que as equipas têm de respeitar mínimos exigidos pela dimensão das populações que servem, são precisos muitos mais médicos daqueles que esses hospitais necessitam para responder às necessidades diárias da sua actividade electiva. Um exemplo na minha especialidade, o caso da cirurgia. Para fazer as consultas não urgentes, e para operar esses doentes, em função do número de camas de internamento e das disponibilidades do bloco operatório, eu preciso de X cirurgiões, onde incluo não só os especialistas mas os internos em formação, mas para garantir a urgência externa esse número tem de ser multiplicado por 3 ou 4. Ora um serviço de cirurgia não pode ter nos seus quadros esse número de profissionais, pelo simples facto de não ter no dia a dia trabalho para lhes dar. Os especialistas e os internos em formação precisam de um número mínimo de intervenções cirúrgicas anuais para puderem manter as suas capacidades técnicas, tal como os pilotos de aviões precisam de horas de voo mínimas anuais para manter os seus empregos. Se eu tiver demasiados especialistas e internos no serviço, não consigo dar a cada um esse número mínimo de operações que os mantenha eficazes. Nenhum hospital pode dimensionar os seus quadros com base nas necessidades da urgência. Quando comecei o meu internato de cirurgia nos então chamados Hospitais Civis de Lisboa, havia 7 serviços de cirurgia em 5 hospitais, mas a urgência externa era apenas oferecida no Hospital de São José. Não havia falta de recursos humanos para garantir a urgência. Mas a totalidade dos hospitais, fora dos grandes centros urbanos, são hospitais isolados, e os seus quadros, dimensionados para o trabalho electivo, não conseguem na esmagadora maioria das especialidades ter capacidade de resposta para as necessidades da urgência. Vamos a exemplos concretos. Beja, Évora, Guarda, Portalegre, Bragança e dezenas de outras cidades precisam de ter os seus hospitais próprios, e as suas urgências abertas, mas será sempre quase impossível ter quadros suficientes para serem auto-suficientes. Quer em recursos médicos indiferenciados, quer nas diferentes especialidades necessárias, quase todos esses hospitais precisam para manter as suas urgências externas de recorrer a contratações de médicos. Desde há muito que é assim, até porque a Ordem dos Médicos exige em muitos casos uma relação entre os médicos necessários em presença física face às populações que servem, números exagerados, que a não serem cumpridos levam ao encerramento das urgências. Foram estas necessidades óbvias de contratação de médicos à tarefa que levou à elevada dependência de tarefeiros e que levou à criação de um sistema paralelo dentro do SNS baseado em vínculos precários e lógicas de mercado. Esta situação fragiliza a capacidade do estado de planear, dirigir e reter equipas próprias, comprometendo a soberania institucional e a continuidade do serviço público. Os meus colegas que resolveram escolher a “carreira” de tarefeiros, e pasme-se já serão 25%, não estão a cometer nenhuma ilegalidade, estão apenas, ajudados por empresas de empregadores que lhes facilitam a colocação, a aproveitar a lógica do mercado. Mas a juntar a estes eventuais 25%, que só exercem à tarefa, há muitos outros que complementam os seus empregos no SNS com tarefas mais esporádicas. Não são, portanto, os tarefeiros um grupo homogéneo, não representam os mesmos interesses, não têm a mesma filosofia de vida. Um tarefeiro que acumula a sua actividade dentro de um SNS, baseado na hierarquia da competência, numa medicina multidisciplinar e tutelada, com o exercício esporádico de tarefa, tem ao menos a vantagem de se manter mais actualizado, mais competente. O tarefeiro que fez deste modo de exercer medicina em exclusividade, pode ser útil porque com a sua actuação ajuda a manter urgências abertas, mas não contribui para a sua qualidade. Para aqueles que defendem que os tarefeiros devem ser integrados no SNS, esquecem que eles escolheram exactamente o contrário. Mesmo integrados na nova especialidade de Medicina de Urgência –, mas com que competências? –, eles nunca conseguirão ganhar o que ganham à tarefa. Nesta fase está, de facto, o SNS refém deste modo de trabalhar. Está refém dos grupos que fazem a distribuição dos tarefeiros pelos hospitais que deles necessitam, ganhando milhões à percentagem. Nunca haverá uma carreira de tarefeiros, mesmo para aqueles, que fazem a 100% este modo de exercer medicina. É para mim incompreensível que esta opção, que vive apenas da lógica do manter abertas ou fechadas determinadas urgências, possa sobrepor-se a uma lógica de qualidade dos serviços que presta. Um cirurgião que resolva apenas trabalhar à tarefa, podendo operar um doente que depois nem sequer segue, a quem não poderá acudir no caso de ter uma complicação, devia ser proibido de existir.Termino com duas ou três ideias. Como opção para a necessidade de tarefeiros. Para receber os doentes nas urgências precisamos de jovens médicos no começo das suas carreiras. Todos os internos das especialidades, de todas as especialidades, deviam em todas as etapas dos seus internatos fazer 12 horas de urgência externa nos seus hospitais de formação. Ter jovens médicos, mesmo que seja uma minoria, a não querer uma especialidade porque querem optar pela “carreira” de tarefeiros é deprimente. Não obrigar os jovens especialistas recém-formados a não ficar um período mínimo de dois anos a trabalhar no SNS, sem ser em exclusividade, é incompreensível por duas razões principais: porque não têm ainda capacidades para serem autónomos fora de um ambiente de trabalho com uma forte hierarquia de competências, onde ainda possam ter uma tutela que os ajude a progredir, e porque seriam um reforço das capacidades humanas do SNS. No meu tempo era assim. Havia dois tipos de especialistas depois de atingido com êxito o grau após aprovação no exame final. Era-se especialista hospitalar. Para inscrição como especialista na Ordem dos Médicos e ser completamente autónomo, era necessário um exame específico, muito mais exigente à Ordem. E a diferença era óbvia, no exame final do internato hospitalar ninguém chumbava, no exame à ordem, mesmo feito anos depois a taxa de reprovação era enorme. Quando a Ordem dos Médicos abdicou do seu exame e concordou com o exame único aconteceu o que se previa, a exigência baixou mas ninguém reprova na mesma. Obrigar os jovens especialistas a ficar dois anos e exercer em regime hospitalar pode resolver em muitas especialidades as carências de recursos humanos, mas meus caros leitores, continua a garantir uma maior competência desses mesmo especialistas e uma melhor qualidade da medicina praticada. É melhor para os doentes. Vejamos o meu caso pessoal. Fui especialista de cirurgia geral aos 30 anos, e cirurgião do quadro dos então HCL depois de um concurso público em que concorreram 84 candidatos para 12 vagas. Um concurso muito exigente com três provas, um júri de cinco elementos, em que três eram obrigatoriamente do topo da carreira hospitalar. Entrei em segundo lugar, mas continuei a trabalhar no meu serviço, sob a tutela dos meus superiores hierárquicos, a operar apenas os doentes que os meus chefes achavam que já tinha competência para o fazer. Sei que eram outros tempos, e não sou daqueles que digo que no meu tempo é que era bom. Hoje os critérios são outros, mas há uma coisa que se mantém. Formar um especialista, não só em cirurgia geral é uma responsabilidade do SNS. São seis anos de trabalho tutelado, num ambiente de forte hierarquia de competências, mas um trabalho remunerado embora mal pago. São seis anos de curso e mais seis ou sete, sempre em hospitais do SNS que custam muito dinheiro a todos os contribuintes. Não têm os médicos nenhuma obrigação a retribuir à sociedade? Acho mesmo que era um dever cívico, uma obrigação moral e ética numa sociedade democrática. Claro que a Ordem dos Médicos devia ter uma posição clara, uma preocupação constante com a qualidade da medicina praticada em Portugal, voltar a dar às carreiras médicas a dignidade e a importância que tiveram no passado. Opor-se com frontalidade, a que se possa imaginar uma “carreira” de tarefeiros, sinónimo de descontinuidade assistencial, de enorme risco clínico e com enorme impacto na cultura assistencial e no ensino. Como sou ou fui cirurgião, não resisto a citar um grande cirurgião dos HCL, de seu nome Borges de Almeida, que dizia com ironia e muita graça: os cirurgiões são como os touros, só são perigosos quando isolados! Hoje mais do que nunca, a medicina de qualidade exercida de modo isolado é perigosa para os doentes. É isso que temos de encarar de frente. Grandes alterações estruturais no nosso Sistema de saúde. Não podemos continuar a discutir esse sistema apenas numa lógica de lutas ideológicas e muito menos partidárias. Ninguém é dono de soluções milagrosas. Concentrar urgências e preocuparmo-nos com a qualidade não seria um bom princípio?Cirurgião. Escreve com a antiga ortografia