Os poderes do Presidente

A História demonstra que, por mais bem-intencionada que seja, a tentativa de reformar o sistema político-partidário a partir de cima raramente tem sucesso.
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O candidato presidencial João Cotrim de Figueiredo afirmou este sábado que o Presidente da República deveria poder vetar algumas leis, contra a vontade do Parlamento. “Acho que um Presidente que é eleito com legitimidade democrática devia ter a possibilidade de ter vetos que não fossem ultrapassáveis”, disse o candidato liberal, citado pelo Expresso, acrescentando que esta medida poderia ser incluída numa eventual revisão constitucional.

Entre os candidatos presidenciais, atuais ou potenciais, João Cotrim de Figueiredo não será o único a ver com bons olhos um eventual reforço dos poderes do Chefe do Estado. O almirante Gouveia e Melo tem também sinalizado que não vê o Presidente como uma figura passiva, ou meramente cerimonial. André Ventura, que poderá também avançar com uma candidatura a Belém, vai bastante mais longe e há muito que defende a passagem para um sistema presidencialista, com o fim da figura do primeiro-ministro.

A seu favor, o Presidente tem o facto de ser o único órgão de soberania que corresponde a uma pessoa física e que é eleito diretamente por sufrágio universal, o que lhe confere uma legitimidade democrática reforçada. Ainda que mantendo o atual modelo semi-presidencialista, um chefe de Estado com “mais garras” poderia ajudar a impedir excessos e a desbloquear impasses. Indo um pouco mais longe do que aquilo que a sua magistratura de influência lhe permite atualmente, poderia forçar consensos nos grandes temas nacionais e ajudar a acelerar reformas necessárias, numa altura em que o país se encontra bloqueado a vários níveis: na política, devido à inexistência de uma maioria estável no Parlamento; na economia, na Justiça, na saúde, na educação e até no combate aos fogos florestais.

Contudo, desde o fim do Antigo Regime (o que terminou em 1834) que o chefe de Estado português não tem essas competências. A nossa tradição política, herdada da monarquia constitucional do século XIX, confina o Presidente a uma posição quase semi-cerimonial. E as poucas tentativas significativas que tiveram lugar para alterar isto terminaram de forma trágica.

A primeira foi protagonizada pelo rei D. Carlos. Na monarquia liberal, o rei era sobretudo o garante do rotativismo entre os dois principais partidos. Ditava a tradição que, assim que um governo cessasse funções, o soberano chamasse ao poder o partido que estivera na oposição.

Porém, no início do século XX, após décadas de compadrios e bancarrotas, o rotativismo entrou em crise profunda, devido às cisões e guerras internas nos dois grandes partidos do regime. Em 1907, perante mais uma crise política, o rei decidiu romper com a tradição: dissolveu as Cortes e permitiu que o primeiro-ministro João Franco governasse temporariamente “à turca”, numa espécie de ditadura administrativa que serviria para fazer as reformas de que o país carecia. O rei justificou a decisão com a necessidade de fazer uma “revolução a partir de cima” para evitar uma que viesse “de baixo”, mas ao agir desta forma selou o seu destino e o da sua dinastia. Ao suspender a tradional partilha de poder entre os grandes partidos do rotativismo, D. Carlos perdeu o apoio das elites monárquicas e de boa parte da opinião pública. E, ao mesmo tempo, por intervir diretamente no processo político, tornou-se o alvo preferido da Carbonária e de outros radicais. Estas circunstâncias conduziriam ao regicídio de 1908 e ao fim da monarquia, dois anos depois.

A segunda grande tentativa deu-se com Sidónio Pais, um republicano conservador  que em 1918 tentou impor um sistema presidencialista, gozando para isso de amplo apoio popular. Pessoa chamou-lhe o “Presidente Rei”, pelo facto de concentrar em si a chefia do Estado e o poder executivo, à semelhança dos monarcas absolutos anteriores a 1834. A tentativa não durou muito, porém; em dezembro desse ano,  Sidónio foi assassinado na Estação do Rossio por um ativista republicano.

Para os leitores mais jovens, bem como para muitos dos que têm menos de cem anos, a menção a estes episódios da nossa História pode parecer desajustada face ao tema em apreço. Mas, com as devidas e evidentes diferenças, a situação da nossa República tem algumas semelhanças com as de 1907 e 1918. Temos um sistema político bloqueado e altamente polarizado. Somos governados por executivos frágeis, que parecem presos por arames. E a classe política está muito desacreditada aos olhos de grande parte da população, facilitando a ascensão dos populismos.

Neste contexto, é tentador ver no Presidente da República a figura capaz de pôr a casa em ordem e quebrar as amarras que travam o desenvolvimento do país. Porém, a História demonstra que, por mais bem-intencionada que seja, a tentativa de reformar o sistema político-partidário a partir de cima raramente tem sucesso. A reforma tem de ser feita a partir de dentro, a começar pelos grandes partidos tradicionais.

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