Os novos missionários
Na noite de quarta-feira, às 22.12, na SIC Notícias, António Martins da Cruz, embaixador, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, iniciou assim o seu comentário sobre a vitória de Donald Trump: “As eleições a que assistimos nos EUA provaram duas coisas. Primeiro, mais uma vez, as sondagens falharam completamente. Segunda observação: 99 por cento dos comentadores, alguns dos quais passaram por esta mesa, por outras estações de televisão, pelas rádios e pelos jornais, falharam redondamente, tal como as sondagens. E isto tem de ser dito, porque nós tivemos sobretudo comentadores e alguns jornalistas missionários, em vez de serem neutrais, a analisarem a situação.”
Isto tem de ser dito. Num país em que se inventam “tabus” cada vez que um político não responde a uma insinuação de algum jornalista, está instalado um verdadeiro tabu antidemocrático. A saber: não se discute televisão. Acima de tudo, tenta-se preservar a “ideia” segundo a qual a televisão é uma máquina transparente e inquestionável.
Não pretendo abusar das palavras incisivas de António Martins da Cruz: as considerações que se seguem são da minha responsabilidade. Seja como for, permito-me reforçar o facto de podermos detetar em muitas formas e formatos televisivos esse perverso espírito “missionário”. Conscientemente ou não, há comentadores que se apresentam como juízes de um tribunal sem recurso, apenas porque se exprimem num ecrã que parece dispensar qualquer prudência de responsabilidade social.
O fenómeno é tanto mais significativo quanto, globalmente, todas as sensibilidades da classe política passaram a encarar a televisão (nela participando) como arma de arremesso contra os seus adversários. Para muitos políticos, o desafio máximo a esses adversários é mesmo o cúmulo da puerilidade: “Ele tem de vir explicar-se à televisão…” O que é sempre potenciado pela gritaria promovida por alguns comentadores e jornalistas.
Há outra maneira de dizer isto, aliás observável na SIC Notícias. O modelo de “análise” da política, também consagrado nos temas do futebol, passou a ocupar horas infinitas e redundantes de programação, dispensando, por exemplo, o acompanhamento regular dos acontecimentos das áreas artísticas - na melhor das hipóteses, a esquálida abordagem dessas áreas foi relegada para as madrugadas da SIC (Todas as Artes passa na noite de quinta para sexta-feira, às 02.05).
Uma visão severa desta situação, também ela de raiz jornalística, considera que este modelo de programação implica um “apagamento” dos chamados temas culturais. Não é essa a minha perspetiva. Tal visão esgota-se numa descrição banalmente quantitativa, instrumental e piedosa das próprias diferenças culturais que nos distinguem.
O que está em jogo não é a questão métrica de haver mais ou haver menos cinema, teatro, música, etc. O que está em jogo é o triunfo de uma outra cultura, enraizada na fulanização doentia da política, sustentada por uma metódica tribunocracia televisiva. Daí a patética concorrência com a CNN Portugal: com a mesma impotência criativa, os dois canais vão evitando ideias realmente televisivas, cada um deles tentando “vencer” o outro na utilização de novos grafismos ou na multiplicação de quadradinhos falantes - à semelhança de diversos canais internacionais, é verdade.
Em 2019, numa entrevista ao canal franco-alemão Arte, a propósito do seu filme O Livro de Imagem (2018), Jean-Luc Godard recordava uma observação perturbante de Claude Lefort: “As democracias modernas, transformando a política num domínio autónomo de pensamento, criam condições para o totalitarismo.” Conduzidos pela cegueira filosófica de abarcar o mundo “em tempo real”, os novos missionários televisivos tratam também o domínio político como um casino encerrado no seu delírio narcisista, reduzindo a riqueza potencial da vida democrática a um duelo infantil de “prós & contras”. Fazem-no mantendo a pose sacerdotal de quem julga que está a preservar um ideal redentor de comunicação - na prática, são todos os dias vencidos pela malícia de Donald Trump e afins.