Os amigos que partem

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Há semanas em que de súbito nos damos conta de vários amigos que partem, apanhando-nos de surpresa, porque em bom rigor a morte não se anuncia. Sabemos que é inexorável, mas sempre esperamos que vá adiando a sua chegada. Nos últimos dias os acontecimentos precipitaram-se de um modo perturbador. Se é verdade que com o andar do tempo a lista dos amigos desaparecidos vai-se tornando maior do que a lista daqueles que continuam a acompanhar-nos, o certo é que a memória se enche de lembranças de natureza diversa, constituindo o verdadeiro enigma da vida.

Começo por lembrar Francisco Pinto Balsemão. São cinquenta anos de contacto e a sua recordação prende-se com a própria afirmação da democracia. Numa coerência exemplar, bateu-se sempre, com todas as suas forças e com os inerentes riscos, pela liberdade de opinião e contra a censura, em nome de uma imprensa e de uma comunicação social livres. Para o cidadão ativo e interveniente, que entendia ser o acontecimento o nosso mestre interior, a liberdade nunca estaria adquirida, e o desejo de contribuir para um mundo melhor, obrigava ao cuidado e à atenção permanentes. Não se trata de construir uma sociedade de bons e maus em confronto, mas de respeitarmo-nos mutuamente como seres livres e iguais em dignidade e direitos. Numa das nossas últimas conversas longas, quis trocar impressões sobre a educação e sobre as novas circunstâncias de incerteza, interrogando-se sobre como integrar o progresso na aprendizagem. E todos os anos no Centro Nacional de Cultura encontrávamo-nos para decidir o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, da Europa Nostra, de que foi um entusiasta, ligando o património cultural e a comunicação, como antes estivéramos com Isabel da Nóbrega no Campeonato Nacional de Língua Portuguesa. Foi um inovador e um pioneiro sempre disponível para concretizar novas ideias. Muito se disse nestes dias sobre o seu exemplo. Contudo, muito ainda fica por dizer, que o tempo se encarregará por certo de tornar evidente.

Há poucos dias, falei com Álvaro Laborinho Lúcio, que me disse estar a contas com um problema de saúde que o impedia de me ajudar num pequeno problema. A sua morte colheu-me de brutal surpresa. Admirei sempre a sua hombridade, a criatividade e o seu permanente compromisso em prol da humanização da justiça, dos direitos das crianças e dos jovens, em lugar do culto dos gestos espetaculares e inúteis praticados em nome de qualquer cegueira moralista. O que fez no Centro de Estudos Judiciários e nas políticas de justiça foi fundamental e não pode ser esquecido. Tive o gosto de apresentar um dos seus livros e de contar com a sua amizade. Sobre ele recordo o que Cícero disse: a amizade autêntica é a amável concordância com as coisas fundamentais da vida.

Lembro ainda muitos anos de encontro literário e cultural com Liberto Cruz. Nas últimas semanas ainda combinámos encontrar-nos para falarmos na Gulbenkian sobre Ruben A., além de termos recebido os seus contributos para a decisão de um prémio literário. Era um estudioso da literatura e um criterioso ensaísta de mérito, a cuja obra voltei há dias para usufruir dos seus preciosos conhecimentos e reflexões. E termino a recordar João Queiroz um dos grandes pintores contemporâneos, que nos deixou no auge da sua capacidade criadora. Ficamos atónitos perante o arbítrio dos deuses.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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