A síndrome Constant da III República

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Numa conferência genial (Paris, 1819), Benjamin Constant (1767-1830) caracterizou rigorosamente as potencialidades e limites da democracia representativa, nessa altura apenas a despontar no Ocidente. Ao contrário da antiga democracia ateniense, marcada pela participação direta dos cidadãos nos negócios públicos, nas democracias atuais já não existe uma ágora, como espaço físico concreto para tomar decisões coletivamente. Em sociedades gigantescas como as nossas, com milhões de cidadãos, a intervenção política de cada um de nós efetua-se através da eleição regular de representantes para os parlamentos e governos. Contudo, Constant já tinha consciência dos perigos que no futuro ameaçariam a saúde dos regimes representativos. Em primeiro lugar, a demissão dos cidadãos em relação aos seus direitos e deveres políticos, concentrando-se em exclusivo na sua vida privada e nas suas carreiras particulares. Em segundo lugar, o enorme risco de os eleitos traírem o contrato de confiança contido em cada escolha de representantes. Constant alertava para o perigo de os representantes esquecerem a procura do bem público, trocando o seu dever de lealdade para com o povo pelas recompensas dos grandes poderes económicos: "Para obter os favores da riqueza é preciso servi-la", advertia Constant.

A acusação do Ministério Público na Operação Marquês pode causar-nos uma reação paradoxal. Por um lado, é surpreendente e positivo que o nosso regime representativo tenha robustez bastante, a nível da separação de poderes, para permitir ao poder judicial uma tal façanha. Contudo, inversamente, mais do que uma acusação a um anterior primeiro-ministro, a Operação Marquês revela cruamente um terrível quadro patológico na nossa democracia. Todos os males antecipados por Benjamin Constant aparentam ter-se concretizado numa etapa delicada da nossa III República. Nos anos decisivos da entrada de Portugal na zona euro, e sobretudo após a grande crise financeira de 2008, o país parece ter sido governado por uma elite, organizada como rede criminosa, pronta a satisfazer as suas mesquinhas vantagens pessoais em detrimento da salvação do país e do bem-estar do povo português. No lugar central está o poder do "crédito" (na expressão de Constant). O banqueiro mais famoso do regime, que contrata para a sua folha de pagamentos gestores incompetentes e políticos venais. Como seria inevitável, uma governação, seja política ou empresarial, dominada apenas pela procura de ganhos ilícitos para quem governa só poderia terminar em tragédia geral. Portugal jamais escaparia à austeridade, mas talvez tivesse podido escapar ao suplício da troika. A PT colapsou e o BES, o tal banco que nunca precisou do apoio do fundo de resgate, faliu, caindo para dentro do bolso dos contribuintes que estão a garantir uma ficção chamada Fundo de Resolução. Os advogados de defesa designaram como "romance" a acusação do MP. Infelizmente, trata-se de um romance hiper-realista que adere bem às circunstâncias de que todos somos vítimas e testemunhas. Ao contrário do que refere António Costa, a partir de agora este caso não se confina só à justiça, mas pertence também à política. Mesmo antes de transitar em julgado, este caso - com um impacto moral demolidor ainda difícil de ser avaliado - revela que as instituições da III República, incluindo o Partido Socialista, falharam redondamente na única tarefa que, segundo Constant, pode manter saudável a democracia representativa: "Uma vigilância ativa e constante sobre os representantes."

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