E pronto, vivemos no lodo. Todos os indiciados, acusados e possíveis suspeitos de crimes de corrupção e os que dizem respeito às relações entre poderes políticos e económicos são culpados..Falta porém um pormenor. Algo que se tornou um pequeníssimo detalhe: condenações em tribunal..Bem sei que só não vê quem não quer que são todos culpados. Basta ler os jornais e ver as televisões para saber que não são precisos julgamentos em tribunais. Chega ler os colunistas que sempre souberam que havia maroscas porque lhes cheirava, para perceber que essas coisas de tribunais e leis e direitos e essas porcarias todas só servem para que os malandros escapem..Não há escutas? Não há papéis? Não há testemunhas? Não há filmes? Não há mesmo, em alguns casos, acusações? Então siga, passe-se às sentenças. Não as que já tão lavradas e para as quais não há recursos, as que fixaram nas cabeças dos arguidos ou meramente indiciados, nos tribunais populares, o ferrete: culpado. Isso já foi tratado. As outras, as que mandam para a cadeia..Para quê esperar pelos tribunais se já se sabe tudo? Para quê dar ouvidos a esses colaboracionistas, esses adoradores de corruptos, esses, quase de certeza, vendidos aos bandidos que agitam minúsculas bandeiras com insultos do género "presunção de inocência", "Estado de direito", "provas" e outros truques que tais? E repito e volto a repetir o que já escrevi e disse muitas vezes, não se confundam os julgamentos éticos e políticos com os julgamentos em tribunal. Uma coisa, legítima e necessária, é avaliar ética e politicamente um primeiro-ministro, um ex-primeiro-ministro, um ministro ou um qualquer outro político por condutas provadas ou confessadas, outra, diferente, é um processo judicial..O que estes investigadores, acusadores e julgadores não entendem é que estão na mesma barca de alguns que julgam. Apelam ao desrespeito à lei que alguns que serão corruptos desrespeitaram. Lutam contra direitos que os que serão culpados de crimes desrespeitaram. É que o Estado de direito não é um pronto-a-vestir em que cada um entra e escolhe o que quer. É um edifício em que ao se retirarem os alicerces desmorona..Já tenho poucas dúvidas sobre o amor à democracia e ao Estado de direito da maioria dos que, no fundo, condenam arguidos e indiciados sem sequer lhes conferirem o mais básico direito democrático da presunção de inocência. Logo, estou seguro de que sabem o que estão a semear: um país em que os tribunais serão meros figurantes de uma peça encenada por meia dúzia de pseudojornalistas e outra meia dúzia de procuradores. Eu não quero esse país..Quero um país que lute ferozmente contra a corrupção - escrever isso é quase um insulto à minha própria dignidade, mas é a única coisa que concedo a essa gente -, que não dê tréguas ao combate à apropriação do interesse público por parte de privados. Não quero que os tribunais sejam substituídos por julgamentos na praça pública, em que as garantias processuais sejam apenas pró-formas sem conteúdo nem utilidade..Eu não quero viver num país em que uma acusação ou, mesmo, um mero indício é uma sentença transitada em julgado. Um país exposto a todos os abusos e à mercê de incendiários de coluna de jornal, de órgãos de comunicação sem escrúpulos e de populismos judiciais..O Presidente da República que ninguém ouviu.Que os que sabem tudo e já condenaram indiciados e acusados tomaram conta do espaço público é óbvio e notório. Que as suas verdades não admitem contradição é evidente. Tão evidente que conseguiram que a entrevista, ao Público, do Presidente da República e o que ele disse sobre justiça tenha sido ignorada. E a razão é muito simples: Marcelo Rebelo de Sousa veio contrariar frontalmente a narrativa instalada e fez um discurso de defesa intransigente do Estado de direito..Duas frases lapidares. "Se renunciarmos a uma justiça em tempo, renunciamos ao Estado de direito" e "... há um outro risco, que é prescindir-se do sistema judicial". No fundo, as duas complementam-se..O Presidente da República diz algo que é evidente: há um desfasamento entre o tempo mediático - ou político - e o judicial. Esse terá de ser sempre diferente. Os processos levam tempo a ser elaborados e as garantias são essenciais. Mas o que ele destaca é que esse desfasamento é gigantesco. E, claro está, corre-se o risco de, na prática, se prescindir do sistema judicial. E é aqui que está o âmago do problema. A condenação é feita por quem tiver informação disponível no sentido que muito bem quiser. Ficamos à mercê de agentes da justiça e da informação que querem passar e dos órgãos de comunicação social, pessoas com acesso aos mass media e agentes políticos com mais força no espaço público. Quanto mais tempo mais a mensagem que se quer passar se consolida e fazendo-se essa espécie de julgamento põe-se em causa o sistema judicial e com ele o próprio Estado de direito..A crítica do Presidente da República aos agentes judiciais e aos órgãos de comunicação é clara..Palavras de Marcelo: "Como não vai haver decisão judicial nos próximos longuíssimos anos, o melhor é começarmos a debater politicamente, chegamos a uma conclusão política, tomamos decisões políticas e, olhe, quando chegar a decisão judicial fica pro memoriam.".A verdade é que os megaprocessos e a lentidão da justiça têm interessados óbvios: os que querem prescindir do sistema judicial para serem eles a condenar na praça pública e os verdadeiros corruptos que o sendo não estão preocupados com o seu bom nome e veem o seu castigo atirado para as calendas..De facto, não é muito estranho o Presidente da República não ter sido ouvido. É que se fosse ouvido havia a possibilidade de muitos se interrogarem sobre o funcionamento da justiça e os poucos escrúpulos dos vendedores de certezas..Valha-nos o Presidente da República.