Israel, uma democracia que não é só esquerda e direita

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Uma hora de carro separa a praia de Telavive e um casal de gays deitado ao sol - e um deles até pode ser um árabe israelita - dos muros da cidade velha de Jerusalém, onde os judeus ultraortodoxos são parte da paisagem. Engana-se quem julga que se trata de um cliché, pois é tão verdade como junto ao Mediterrâneo poder estar um dia de verão e lá no alto, naquela que os judeus consideram a sua capital eterna, estar a nevar. Ora, estes extremos, ou diversidade, se preferirmos, refletem-se no espectro partidário de Israel, que com certa justiça se autointitula a única democracia no Médio Oriente. E explicam como é complicado formar coligações de governo e como dentro dessas dificuldades alguém como Benjamin Netanyahu se tem mostrado genial, a ponto de já acumular mais anos como primeiro-ministro do que David Ben-Gurion, o homem que em 1948, numa galeria de arte na Avenida Rothschild, proclamou o moderno Estado de Israel.

A Avenida Rothschild fica em Telavive, uma cidade construída de raiz pelos judeus chegados da Europa na viragem do século XIX para o XX. Nela é tão normal um mercado iemenita, ponto de referência para muitos judeus oriundos do mundo árabe e expulsos após 1948, como edifícios em estilo Bauhaus, produto dessa Alemanha pré-nazi que tanta intelectualidade deu a Israel. Um dia, em Haifa, cidade símbolo da coexistência entre judeus e árabes, visitei o Technion, universidade mais antiga do que o país, e fiquei a saber que foi por poucos votos que o hebraico, hoje idioma oficial de Israel, se impôs lá ao alemão como língua de ensino.

Olhe-se para os resultados das legislativas de 17 de setembro e percebe-se que mais importante do que se a coligação Azul e Branco do general Benny Gantz teve mais votos do que o Likud de Netanyahu é a capacidade de criar uma aliança que faça sentido numa cenário em que a divisão esquerda-direita existe, mas também outra entre laicos e religiosos. E não se pode esquecer ainda que a par dos 80% de judeus há 20% de árabes (quase dois milhões), descendentes de palestinianos que permaneceram nas suas terras durante a guerra de independência israelita, um conflito desencadeado pelos vizinhos árabes, que recusaram a partilha da Palestina histórica em dois Estados proposta pela ONU. O problema de uma pátria para os palestinianos de Gaza e Cisjordânia começa aqui, no momento que chamam Nakba, catástrofe.

O livro The Israelis, de Donna Rosenthal, fala de judeus laicos e religiosos, de árabes muçulmanos e cristãos, de drusos e circassianos, de askenazis e sefarditas, até de judeus tão ortodoxos que recusam o atual Israel porque acreditam que um dia o messias criará outro. Quem o leu terá pistas para entender como um Parlamento com uma dezena de partidos é um inferno em termos de compromissos (e só não são mais porque há uma fasquia de 3,25% para eleger). Mas, no fundo, quase tudo se resume a três questões: Netanyahu e Gantz vão entender-se para uma grande coligação de unidade nacional, como quer o presidente Reuven Rivlin, ou este último insistirá em recusar não o Likud mas o seu chefe a braços com suspeitas de corrupção? O Israel Beitenou, de Avigdor Lieberman, vai manter a sua recusa tanto de participar numa aliança com os partidos religiosos como numa aliança onde estejam os árabes? Os partidos árabes vão integrar o jogo político sem fazer da questão palestiniana a agenda única?

É admirável ler a imprensa israelita nestes momentos: nada fica por escrutinar (aliás, nem em tempos normais sequer o Exército e o tratamento dado aos palestinianos escapam ao Haaretz, no qual há colunistas a dizer que a Jordânia é mais democrática do que Israel (!), quando a Turquia seria o outro país da região a incluir na categoria). E os cenários políticos são tema de artigos deliciosos.

Netanyahu tem agora a iniciativa, por congregar mais apoios, e o passado já mostrou que pode ser um erro dá-lo por acabado. Isso acontecerá, sim, se a justiça israelita o considerar culpado. E esta, no passado, foi implacável com governantes que não possuíam o estofo ético de Ben-Gurion, de Golda Meir (a primeira chefe de governo no mundo que não saiu de uma dinastia) ou de Yitzhak Rabin, arquiteto com Shimon Peres e o líder palestiniano Yasser Arafat dos Acordos de Oslo e da esperança de paz.

Se no final Gantz, ex-chefe do Estado-Maior, comandante numa das guerras com o Hamas em Gaza, conseguir formar governo em vez de Netanyahu, não se espere, porém, grandes novidades. A relação umbilical com os Estados Unidos vai continuar, a questão palestiniana continuará a ter mais tratamento económico do que político (sobretudo na Cisjordânia e com apoio discreto saudita), o braço-de-ferro com o Irão está para ficar. Veremos se, a pensar na minoria árabe e na tradição de respeito que vem desde o movimento sionista, Gantz será mais hábil do que Netanyahu a preservar um Estado judaico simultaneamente democrático.

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