Viver e morrer nos videojogos

Ver ou rever "Ready Player One" num ecrã televisivo pode ser uma sugestiva descoberta - Steven Spielberg ilustra, ao mesmo tempo que desafia, os valores da cultura dos videojogos.
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Sempre que ouço alguém com responsabilidades no domínio da pedagogia social dar conta das suas preocupações com o "tempo" que muitos adolescentes gastam com videojogos... pois bem, tenho dificuldade em acreditar que pensaram realmente na complexidade do assunto que estão a encarar. Será mesmo uma mera questão de... tempo?

Entenda-se: não me apresento como iluminado guru dessa complexidade. Devo mesmo confessar o misto de perplexidade, hesitação e insegurança com que observo muitas componentes da nossa idade digital.

Seja como for, considero mera puerilidade "científica" o tratamento da poderosíssima cultura dos videojogos como um banal problema de "ocupação temporal" dos jovens (e adultos, já agora). Até porque semelhante profilaxia só pode atrair outro discurso piedoso - tratar-se-ia de dedicar mais tempo a "outras" actividades - que reduz a nossa existência social a uma aritmética de horários mais ou menos redentores.

Relanço estas dúvidas a propósito da (re)visão do filme Ready Player One, de Steven Spielberg, num canal do cabo (TVCine). Desde logo para sublinhar uma evidência paradoxal, porventura incómoda: a qualidade visual da exibição televisiva é francamente superior à que encontrei na sala escura. O que, aliás, apenas reforça a condição ambígua do fascinante trabalho de Spielberg: por um lado, ao adaptar o romance homónimo de Ernest Cline, o realizador de E.T. (1982) e A Lista de Schindler (1993) construiu uma fábula crítica sobre um futuro próximo em que o poder dos videojogos se tornou absolutamente dominador, ocupando, literalmente, o quotidiano social; por outro lado, o seu filme existe "mais" e "melhor" nesse meio digital que é, de uma só vez, o seu tema e fantasma.

O que Ready Player One coloca em cena não é apenas um tempo próximo (o ano de 2045) dominado pelos videojogos. Spielberg apresenta-nos uma sociedade (em rede, hélas!) que desconhece as relações humanas através do olhar, das palavras, das trocas afectivas e físicas corpo a corpo. Todos passaram a viver por delegação do seu avatar - o virtual não é a "outra" dimensão, mas o mapa compulsivo de todas as trocas entre os seres humanos.

O que, evidentemente, nos remete para o nosso presente: a lógica visual e, no limite, moral dos videojogos funciona muito para além de uma cândida alternativa lúdica. O que Spielberg expõe é o triunfo de um sistema cultural sustentado por um gigantesco aparato tecnológico em que viver e morrer não passam de incidentes audiovisuais que a fase seguinte do jogo irá superar, rasurando-os da memória - em boa verdade, assistimos ao esvaziamento do próprio conceito de memória e dos seus valores existenciais, individuais e colectivos.

De acordo com uma ideologia escapista há muito consagrada, o desafio expressivo de Ready Player One esteve longe de desencadear grandes reflexões políticas: somos, afinal, dominados pela chantagem comercial segundo a qual o espectacular não passa de um "divertimento" sem consequências.

Numa contradição plena de riscos, Spielberg exprime-se no interior da própria matriz de espectáculo de que a sua visão tenta demarcar-se. Trata-se de recomeçar a pensar a partir de uma ideia radical. A saber: nunca o divertimento foi tão poderoso na configuração dos nossos modos de olhar e habitar o mundo.

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