É tempo do falar grosso e bem
Na conferência de imprensa diária da Direção Geral de Saúde sobre a crise do covid-19, terça-feira, o jornalista agarrou no microfone. E disse que queria saber por que razão "alguns hospitais e maternidades estão a impedir as grávidas de levar consigo acompanhantes para a sala de parto."
E o jornalista quis saber se tal impedimento não seria por falta de equipamento de proteção. Desculpem, volto à frase anterior e acabo-a melhor: "de proteção..." Porque os três pontinhos, as insinuações, os ah-ah-apanheio-os!, são fundamentais neste tipo de jornalismo. E o jornalista interpelou a DGS sobre urgente orientação que ponha termo a esse despautério de se impedir a festa que é um nascimento. O jornalista falou como se não houvesse o que há à volta. Merece que lhe falem grosso.
Tendo o jornalista dito (e lembrado que até já corria uma petição pelos maridos à cabeceira do parto), a mesa oficial respondeu o seguinte. O secretário de Estado da Saúde lembrou o óbvio (o essencial hoje é salvaguardar, num contexto ainda muito nebuloso desta pandemia, que a mãe e o bebé vivessem o grande momento com toda a segurança) e passou a palavra ao técnico da DGS. Este disse que a DGS iria dar em breve uma orientação específica para o assunto.
Entendo o político e entendo o especialista, eles não podiam fazer como Rui Rio. Nesse mesmo dia, o líder do PSD levantou-se no Parlamento, virou-se para a sua própria bancada e disse: "Há deputados que estão aqui e não deviam estar". Antes, o Parlamento decidira uma quota diminuindo o número deputados e ao PSD coube 18 - ora estavam no plenário 36! "Sendo assim, para dar o exemplo vou eu embora." E foi. Magnífico exemplo de quem quer mostrar aos cegos teimosos que os tempos não são para brincadeiras.
Ontem, da mesa da DGS que dirigia a conferência de imprensa não podia vir, talvez, uma lição tão cortante como a de Rio. E talvez não - devia. Talvez fosse profilático começar a tratar as perguntas parvas com medicamentos radicais: "Vá dar banho ao cão! Nova pergunta?" Era o que merecia ouvir quem, trazendo a questão de na sala de parto entrar um acompanhante, a tratou com piruetas. Sim, a parturiente poder ter ao lado o seu companheiro foi um passo em frente, uma conquista. Tal como fazer maratonas, um bem para a saúde. Tal como ir à cabeleireira, pois dá mais bonitos penteados. Tal como os pais exigirem que o país cuide da vida dos seus filhos, é um direito que sossega.
Só que há momentos outros, que não os normais. Às vezes o país é invadido e tem de se chamar os filhos para a guerra. E às vezes fazer maratonas e arranjar cabelos infeta pessoas. Como agora, quando há uma vez - de tempos terríveis e perigos ainda desconhecidos - em que juntar quem não é estritamente necessário numa sala de parto (isto é, a parturiente e pessoal médico), é uma aposta. E as apostas fazem-se nos casinos, não nos hospitais.
E se é verdade que as apostas podem melhorar (em vez de 1/3837, para 1/3835 ou mesmo 1/2) se se usar equipamento de proteção, também é verdade este não é para apostas, ponto. E, sim, o material de proteção, pouco ou muito, não pode ser desperdiçado em casos senão os estritamente necessários. Assim é nos países ricos, quanto mais num pobre.
Sim, a resposta do secretário de Estado e do especialista da DGS podia ser delicada: "Qual é a parte da frase estamos no meio de uma crise pandémica que não entende, senhor jornalista?" Mas talvez fosse melhor mesmo um grosso: "Vá dar banho ao cão!" Tal como estão a fazer os presidentes de câmara italianos, nos magníficos vídeos didáticos que por todo o mundo correm, fartos dos cidadãos equivocados sobre os seus direitos e irresponsáveis sobre os seus deveres. Mandados para casa e fugindo dela, porque stressados de tanto confinamento, metem licra no rabiosque e vão abaná-lo para pistas cheias de outros irresponsáveis. Ou vão à cabeleira, fechada por lei, mas que lhes abre a porta das traseiras...
Isso não quer dizer que não possa haver jornalismo e perguntas a fazer sobre companheiros de grávidas em salas de parto, hoje. Uma seria assim: "Sei que há hospitais e maternidades portuguesas que ainda permitem companheiros nas salas de parto, e sendo eu leigo, mas parecendo-me insólito que se faça isto hoje, a DGS pode explicar-me o que se passa?" A pergunta é longa mas é para que jornalistas e petições irracionais entendam o que ainda não entenderam.
Ontem, o jornal New York Times publicou um longo artigo sobre este assunto. Dois dos principais hospitais nova-iorquinos, o New York Presbyterian (15 mil bebés por ano) e o mundialmente famoso Mt. Sinai, acabavam de anunciar que as parturientes já não podiam ter o seu companheiro nas salas de parto. "Nós não tomamos esta decisão à ligeira, mas estes são tempos nunca vistos e requerem passos únicos para proteger os nossos doentes, as suas família e os seus novos bebés", disse um porta-voz do Mt. Sinai. E a do Presbyterian: "Compreendemos que isto é difícil para as nossas grávidas e os seus entes queridos, mas é um passo necessário para promover a segurança das novas mães e os seus filhos."
Claro que se pode não estar com os médicos e estar com Trump, que anunciara horas antes que a economia americana ia abrir já na Páscoa (12 de abril), porque o coronavírus não era mais do que uma gripe. Claro que se pode ir para as conferências de imprensa com sentido de serviço público ou ir fazer figura urso. A escolha é de cada um, como a de lavar ou não as mãos. Mas uma das escolhas já não pode levar com um simples encolher de ombros. Há que lhe falar grosso.